domingo, 16 de junho de 2024

Marcelo de Azevedo Granato - Crises que separam, crises que irmanam

O Estado de S. Paulo

A todas as nossas diferenças a Constituição atribui igual valor, o que faz de nós pessoas iguais. É essa a mentalidade que deve guiar um esforço de união nacional

Estamos acostumados a falar em crise no Brasil. No governo Dilma Rousseff, a palavra foi associada sobretudo à economia, com suas óbvias repercussões sociais. Dali em diante, porém, a crise mais pronunciada pelos brasileiros é a política. Foi ela que sobressaiu aos abalos provocados pela Operação Lava Jato, pela proeminência das redes sociais, das novas relações de trabalho, da religiosidade na sociedade. Até a pandemia de covid-19 foi transformada em crise política, que serviu, ainda, aos que arquitetaram a devastação da Praça dos Três Poderes em janeiro do ano passado.

Mas a tragédia climática e humanitária que se abateu sobre o Rio Grande do Sul nos expõe a outra crise, bastante diferente. Uma crise em que não se distingue uma pessoa ou um grupo “inimigo”; uma crise a ser combatida através da união dos cidadãos e da solidariedade ao povo gaúcho. Nisso, ela difere da crise política que há anos deforma nossa sociedade, fabricada para produzir desunião e conflito.

Em um de seus significados originais, da medicina antiga, o termo “crise” indicava o momento ou a fase decisiva no decurso de uma doença, a bifurcação entre a salvação e a morte. Nessa acepção, como nota Michelangelo Bovero, “‘superar a crise’ significa: curar-se ou perecer” (Para uma Teoria Neobobbiana da Democracia). Nos tempos atuais, crises são geralmente entendidas como perturbações de um determinado equilíbrio, seja no campo econômico, político, seja de uma instituição, de um sistema social ou mesmo de uma forma de vida e convivência.

Mas nem toda crise deságua em conflitos. Uma crise só se transforma num conflito quando dá origem a uma divisão ou, para usar o termo do momento, uma polarização. Polarização que distingue, de um lado, os amigos; de outro, os inimigos. E o conflito é um desenlace visado somente por aqueles que auferem algum ganho com ele. Na política de hoje, essa é a estratégia sobretudo dos populismos de extrema direita, que colhem votos ao redor do mundo com desmoralização, demonização e antagonismo a grupos que supostamente ameaçariam as tradições e hierarquias sociais dos “cidadãos de bem” (o ódio é o último estágio do medo e da insegurança).

Essa estratégia é evidente no Brasil, e explica o esforço de deputados como Nikolas Ferreira (PL-MG), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Gustavo Gayer (PL-GO), Paulo Bilynskyj (PL-SP) e Caroline de Toni (PL-SC) de “destruir os laços de solidariedade entre os brasileiros” diante da tragédia gaúcha. Nas palavras deste jornal, “as mentiras que disseminam da tribuna da Câmara e por meio das redes sociais, a pretexto de criticar supostas omissões do governo federal no enfrentamento da crise, não têm outro objetivo senão o de abalar a capacidade das pessoas de confiarem umas nas outras” (Os mercadores do caos, 15/5/2024). É curioso: o mesmo grupo político que minimizava a tragédia da covid-19 quer dilatar a tragédia gaúcha.

Outro exemplo dessa estratégia de divisão e confronto é o patriotismo declamado pela armada bolsonarista, que sobrevive de uma demarcação total (inclusive estética) entre os “cidadãos de bem”, os “bons cristãos”, e os “antipatriotas” e “comunistas”. Em resumo: não pode haver concórdia entre os brasileiros. Os “inimigos do povo” agirão sempre como inimigos, e o “povo” nunca poderá confiar neles.

Essa lógica e esses comportamentos são o oposto do que o Rio Grande do Sul precisa neste momento. É claro: a união dos brasileiros para a reconstrução do Estado não exclui a fiscalização detida das ações adotadas nesse contexto, sejam elas individuais ou, mais ainda, de governo. Mas essa união, para prosperar, não pode distinguir e desagregar brasileiros, com o fim de transformar mais uma tragédia humanitária em combate político (o que também vale para a partidarização da ajuda concedida ao Estado, que transparece, por exemplo, em declarações de Lula da Silva e na indicação de Paulo Pimenta, virtual candidato petista ao governo do Rio Grande do Sul, para titular da pasta criada para a reconstrução da região).

Cabe lembrar o que está escrito nas “quatro linhas” da Constituição federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5.º). Ou seja: a todas as nossas diferenças, que fazem de nós seres únicos, a Constituição atribui igual valor, o que faz de nós pessoas iguais. É essa a mentalidade que deve guiar um esforço de união nacional, voltado ao atendimento de interesses comuns, não de identidades comuns (sejam elas políticas, étnicas, raciais, etc.).

No preâmbulo da Constituição, nossos constituintes esclarecem seu objetivo de projetar “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Essa sociedade é e será impossível enquanto acharmos que a fraternidade, conceito tão premente neste momento do País, é a união de um grupo seleto de pessoas (a própria família, os “patriotas”, os “oprimidos”) que rejeitam todos aqueles que não fazem parte dele.

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