segunda-feira, 24 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Violência desigual exige ação do governo federal

O Globo

Homicídios caíram no Sul e Sudeste, mas índices pioraram nas demais regiões, revela estudo

O Brasil é desigual até nos índices de criminalidade. De acordo com o Atlas da Violência divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), enquanto Sul e Sudeste apresentavam em 2022 taxas de homicídio declinantes, Norte, Nordeste e Centro-Oeste registravam números ascendentes.

São Paulo mais uma vez ostenta a menor taxa de homicídios da Federação (6,8 por 100 mil habitantes). Em seguida, aparecem Santa Catarina (9,1), Distrito Federal (11,4), Minas Gerais (12,5), Rio Grande do Sul (17,1), Mato Grosso do Sul (19,7), Rio de Janeiro (21,4), Paraná (22,3), Goiás (23,1) e Piauí (24,1), todas abaixo ou pouco acima da média nacional (21,7).

No outro extremo figura a Bahia, estado que nos últimos anos tem enfrentado grave crise na segurança. Com 45,1 homicídios por 100 mil habitantes, concentra seis das dez cidades mais letais do país: Jequié — a mais violenta (88,8) —, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho, Camaçari, Feira de Santana e Juazeiro. Completam a lista fatídica Cabo de Santo Agostinho (PE), Sorriso (MT), Altamira (PA) e Macapá (AP), todas com taxas acima de 68 por 100 mil, mais que o triplo da média nacional.

Chamam a atenção também as altas taxas de estados do Norte. O Amazonas tem a segunda maior (42,5), seguido por Amapá (40,5) e Roraima (38,6). O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, que chocou o país dois anos atrás, é um sintoma da violência que há muito explodiu na região, onde todos os crimes se entrelaçam. Fica evidente que o problema nesses estados vai além de desmatamento, pesca predatória, grilagem, garimpo ilegal e invasão de terras indígenas. Com tudo isso se misturam o tráfico de drogas e a guerra entre organizações criminosas.

As poderosas facções de São Paulo e Rio de Janeiro hoje disputam o controle de pontos de venda de drogas com as do Norte e Nordeste, criando um ambiente propício para mais assassinatos. Episódios de violência que costumavam estar associados a estados do Sudeste se espalharam pela região. Na madrugada da última quinta-feira, oito pessoas foram mortas e uma ficou ferida numa praça do centro de Viçosa, cidade de 60 mil habitantes no interior cearense. Imagens de câmeras de segurança mostram que as vítimas foram colocadas lado a lado com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça antes de ser executadas. Foi a segunda chacina no município desde 2021.

A União não pode continuar ignorando esse tipo de episódio como se nada tivesse a ver com a segurança pública. Segundo o Atlas, 46.409 brasileiros foram assassinados em 2022. Consideradas as mortes violentas por causa indeterminada, o número vai a 52.391, ou 143 assassinatos por dia. A situação pode não ter piorado, mas também não melhorou. As taxas de homicídio têm permanecido estáveis nos últimos anos.

Em diferentes regiões, vastas áreas são controladas por organizações criminosas que impõem violência e terror à população. Deveria ser óbvio para o Palácio do Planalto que os estados — em especial os do Norte e do Nordeste — não têm orçamento ou recursos humanos e materiais para enfrentar o crime organizado. O governo federal precisa dar uma resposta à sociedade.

Novos fluxos comerciais trazem incerteza à política externa brasileira

O Globo

Fratura entre China e EUA pode custar até 7% do PIB global, diz FMI. Brasil precisa manter equilíbrio

O peso do comércio de mercadorias, medido como fatia do PIB mundial, tem se mantido relativamente estável nos últimos anos, entre 41% e 48%. Mas, ao sair da superfície e examinar outros indicadores, percebe-se que as relações comerciais estão numa transformação inédita desde pelo menos o fim da Guerra Fria. Questões geopolíticas têm sido críticas para definir os fluxos de comércio e investimento, com implicações que o Brasil não pode desconsiderar.

Nos Estados Unidos, há um consenso entre os dois principais partidos políticos de que a China é o maior adversário no tabuleiro global. Isso explica por que a participação chinesa nas importações americanas caiu 8 pontos percentuais entre 2017 e 2023. Depois da invasão da Ucrânia há dois anos, o comércio entre a Rússia e os países do Ocidente também entrou em colapso.

Parte da queda nas trocas comerciais entre americanos e chineses tem sido atenuada com a ajuda de países intermediários, notadamente México e Vietnã. Os chineses têm aumentado as exportações e os investimentos nesses “corredores” e, ao mesmo tempo, eles têm vendido mais ao mercado americano. Como reconhece uma análise recente do Fundo Monetário Internacional (FMI), é difícil prever se o movimento continuará a ser tolerado pelos Estados Unidos. “O caminho à frente dependerá dos políticos. Eles podem aceitar esse redirecionamento do comércio e do investimento, a fim de preservar alguns dos ganhos da integração econômica, ou podem continuar a levantar barreiras”, afirma o documento.

A primeira opção é a mais desejável. Não são boas as previsões de um mundo dividido entre um bloco liderado pelos Estados Unidos, outro pela China e um terceiro formado por países não alinhados. A interconexão planetária hoje é bem mais profunda que no início da Guerra Fria. Num caso extremo de fragmentação, os prejuízos provocados por quedas nos fluxos de comércio poderiam chegar a 7% do PIB global, segundo o FMI. Os fluxos de investimento estrangeiro também seriam afetados, com redução de longo prazo. Em contrapartida, se as relações se estabilizarem em condições menos drásticas, as perdas comerciais ficariam em 0,2% do PIB global.

As incertezas são um desafio para o Brasil. Nossa política externa deveria estar baseada na premissa de que desmantelar a globalização será prejudicial a todos. Em caso de retrocesso, deve-se buscar, dentro do raio de ação possível, a opção mais amena. A situação atual exige uma dose extra de discernimento. Com os Estados Unidos e Europa, dividimos laços históricos e valores democráticos, além de mantermos alianças em áreas distintas, inclusive a militar. Ao mesmo tempo, temos na China nosso maior parceiro comercial e uma fonte de investimento fundamental. Nestes tempos de incerteza geopolítica, a política externa deve sempre procurar manter o equilíbrio, em nome do interesse nacional.

Riscos climáticos exigem mais planejamento e ação

Valor Econômico

Áreas prioritárias como Defesa Civil são submetidas a dotações irrisórias, ainda assim nem sempre utilizadas

Mais desastres climáticos se avizinham, depois da tragédia das águas que provocou enorme destruição e 177 mortes no Rio Grande do Sul. O Ministério do Meio Ambiente chamou atenção para nova seca devastadora no Pantanal, cuja estação de chuvas foi decepcionante, e o bioma já está sendo abatido por incêndios antes mesmo da estação seca. Na Amazônia, os focos de fogo duplicaram de janeiro a maio em relação a 2023. Esse padrão desolador tende a se repetir com mais frequência, alertam os cientistas: a maior parte do território brasileiro será assolada por fortes secas e, no Sul e Sudeste, por chuvas tão intensas como as que caíram no Rio Grande do Sul. A iminência de mais e mais fenômenos climáticos extremos torna incontornável a elaboração, a execução e a preparação de planos de prevenção em larga escala, tarefa com a qual o país nunca se preocupou de fato e que terá de enfrentar.

Pela primeira vez, a Agência Nacional de Águas reconheceu “situação crítica” na bacia do Rio Paraguai, onde todos os afluentes estão abaixo do nível normal esperado para a época. Choveu apenas 60% do que deveria no período das cheias e os rios do Pantanal estão com seus níveis mais baixos desde 2020. Este foi um ano fatídico para a maior planície alagada do mundo, palco de 22 mil queimadas - 60% delas causadas pelas atividades agropastoris, segundo a ONG WWF (World Wide Fund for Nature) - que aniquilaram 40 mil km2 da vegetação, ou inacreditáveis 27% da cobertura vegetal do bioma.

Mais agruras estão reservadas agora para ele. As queimadas começaram mesmo no período em que deveria chover muito, novembro, e no ano até junho foram detectados 1.434 focos de fogo, três vezes mais que em 2020, ano da grande devastação. Em 9 de abril, o governo do Mato Grosso do Sul decretou emergência ambiental no Pantanal. O Monitor das Secas da ANA indica que a estiagem atingia 94% do Centro-Oeste, proporção que subia a 100% no caso de Goiás no início de maio. A seca diminuiu nos últimos dias.

As mudanças climáticas realçam a conexão estreita entre os biomas - os problemas do Pantanal vão muito além dele. “Não adianta termos uma política extremamente seletiva no Pantanal se as cabeceiras de seus rios não forem conservadas no Cerrado”, disse a especialista em conservação da WWF Paula Valdujo. O Cerrado passou à frente da Amazônia em área desmatada no último ano. De agosto de 2023 a fevereiro de 2024, o bioma perdeu 3.798 km2 de vegetação nativa, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A exploração agropecuária, especialmente soja, milho, algodão e pecuária, é responsável por parte dessa perda. Uma parcela do desmate é legal - as propriedades têm de manter 20% como área de proteção, em comparação com 80% na Amazônia. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estimou que 50% dele é feito sem amparo legal.

A destruição do Cerrado vem reduzindo sua superfície de água. Entre 1985 e 2021, segundo o MapBiomas, essa redução atingiu 68 mil hectares, com prejuízos sistêmicos não só para o bioma. Lá nascem 8 das 12 bacias hidrográficas do país, fontes de 40% de toda a água doce do país, que abastecem rios como o Madeira, Pará, Araguaia, Tocantins, Xingu e São Francisco. Com o desmatamento acelerado, o Cerrado está ficando mais quente e mais seco. Uma pesquisa mostrou que entre 1985 e 2022 houve redução de 15% na vazão dos rios do bioma e que se a exploração de seus solos e águas continuar com a intensidade atual até 2050 a redução dos fluxos fluviais mais que dobrará (34%).

O agravamento dos efeitos do aquecimento global exige uma mudança de qualidade no planejamento do Estado e das empresas. O desmatamento no campo é difícil de vencer e tem sido atacado com algum sucesso pelo Ministério do Meio Ambiente. Mas o que se viu no Rio Grande do Sul é de outra natureza e um desafio muito maior a curto prazo, por envolver grandes concentrações humanas. Há pelo menos 1.400 municípios mapeados como zonas de risco e estima-se que 1.900 precisariam ser objeto de ações de prevenção. A maior cidade do país, São Paulo tem quase um quarto de suas áreas (23,9%) inaptas a novas construções - sujeitas a alagamentos, deslizamentos etc. -, segundo a Carta Geotécnica de Aptidão do município (O Estado de S. Paulo, 20-1).

As ameaças do clima exigem que o Ministério do Meio Ambiente cresça em orçamento e influência decisória. Ibama e Instituto Chico Mendes foram sucateados no governo de Jair Bolsonaro. Um quinto dos funcionários do vital Instituto Nacional de Meteorologia, terceirizado, foi demitido por falta de recursos. Áreas prioritárias como Defesa Civil são submetidas a dotações irrisórias, ainda assim nem sempre utilizadas.

Todo o planejamento da União, Estados e municípios deveria contar com a participação de especialistas ambientais. Básicos, sistemas de alertas deveriam ser ferramentas de uso habitual dos municípios. Essas iniciativas parecem partir do zero, mas o importante é que deslanchem. O ato de Marina Silva, presidente Lula e governadores dos Estados onde fica o Pantanal para anunciar ações conjuntas contra os incêndios é o início de uma mudança que pode frutificar.

Reforma deve enfrentar a captura do Estado

Folha de S. Paulo

Agenda de Haddad acerta ao mirar subsídios tributários a setores influentes; falta reduzir privilégios no gasto público

Era questão de tempo para que a opção do governo por ajustar as contas públicas apenas com aumento da arrecadação esbarrasse em limites políticos.

Após críticas do setor privado, os entraves ficaram demonstrados pela devolução pelo Congresso da medida provisória que buscava compensar os efeitos da desoneração da folha de pagamento aprovada pelos parlamentares.

Cedo ou tarde, o governo terá de agir para conter despesas, agenda posta de forma definitiva pelos ministros da área econômica e não rechaçada, ao menos a princípio, por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O episódio teve outro desdobramento favorável, o de chamar a atenção para o enorme e crescente peso dos chamados gastos tributários, a coletânea de benefícios fiscais para atividades e regiões.

O montante —R$ 535 bilhões, quase 5% do PIB— impressionou quem já deveria conhecê-lo, caso de Lula, que criticou os incentivos. Se mostrará disposição em combatê-los, ou ao menos racionaliza-los, ainda está por ser verificado.

A maior parte é direcionada a setores influentes, como a Zona Franca de Manaus, as vantagens do Simples que atingem também pessoas no topo da distribuição de renda, as subvenções ao crédito agrícola e a desoneração indiscriminada da cesta básica.

A conduta geral do Executivo e dos parlamentares não encoraja otimismo quanto a uma ação efetiva para reduzir renúncias e favores. Ambos ainda patrocinam novas iniciativas do gênero, caso do regime do setor automotivo e de subsídios da chamada nova política industrial, entre outras que acabam submergindo na infinidade de exemplos de menor monta.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem sido voz petista isolada até aqui no combate à captura do Estado por interesses privados. Também acerta ao apontar que os três Poderes deveriam assumir responsabilidades em conter o avanço de interesses particulares sobre o Orçamento.

Tal entendimento não deve se resumir às receitas. A teia patrimonialista e corporativista é ampla e inclui os dispêndios, a começar pelo funcionalismo. Categorias poderosas do Judiciário e do Ministério Público obtém facilmente concessões salariais excessivas e penduricalhos cada vez mais numerosos.

O enfraquecimento do Executivo e a multiplicação dos valores de emendas parlamentares impositivas certamente criaram novas distorções. O Congresso obteve maior poder para gerir um quinhão crescente dos recursos, mas não o ônus de garantir boa governança e a primazia do interesse público.

Há uma degradação do processo orçamentário. Reorganizá-lo depende de liderança política.

Teatro venezuelano

Folha de S. Paulo

Maduro cria documento para deter contestação de pleito que organiza para vencer

Na quinta (20), o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE) divulgou um documento no qual 8 dos 10 candidatos à Presidência se comprometem a respeitar o resultado das eleições de 28 de julho.

Contudo o ato não passa de mais um subterfúgio que visa consolidar um terceiro mandato do ditador Nicolás Maduro, num processo farsesco desde seu nascedouro.

Maduro, por óbvio, foi um dos signatários. Seu principal adversário, Edmundo González, disse não ter sido convidado e considerou o compromisso uma "imposição unilateral" do regime.

Numa democracia, o respeito aos resultados das urnas não precisa ser reiterado pelos candidatos. Na Venezuela, esse princípio básico somente servirá para calar e perseguir quem ouse contestar a vitória do caudilho.

A campanha oficial começa em 4 de julho, já contaminada pelo autoritarismo. Os termos do Acordo de Barbados, de outubro de 2023, pelo qual Maduro prometeu eleições justas e competitivas, foram rasgados três meses depois, quando o regime declarou a inelegibilidade de María Corina Machado, vencedora das primárias da oposição.

Com isso, os EUA retomaram as sanções à Venezuela, que haviam sido suspensas pelo acordo. Dois meses depois, o mesmo CNE impediu o registro da candidatura de Corina Yoris, substituta de Machado.

Desta vez, até Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que se mantivera omisso diante do golpe contra Machado, criticou o ato de Caracas.

As manobras do regime forçaram a oposição a pinçar Edmundo González, um diplomata aposentado, como seu candidato. Por mais que as pesquisas o apontem na liderança, trata-se de um nome inexperiente em política.

Maduro ainda bloqueou a observação das eleições pela União Europeia e moveu seu aparato persecutório. Ao menos 37 integrantes da campanha da oposição foram presos somente neste ano, sem contar os forçados ao exílio.

Como em 2019, o pleito de 2024 é organizado para esvaziar a competição. Trata-se de teatro destinado a respaldar mais seis anos de uma ditadura responsável por uma crise humanitária inaudita.

O debate político não é refém do fundamentalismo

O Estado de S. Paulo

O projeto que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa

Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa.

Na semana em que a Frente Parlamentar Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar, mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras, engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita o projeto.

Ainda que parlamentares prometam voltar à carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade diante do racha aparente no mundo evangélico.

O presidente lidera uma esquerda que costuma enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e reforça o preconceito sobre o outro.

Ocorre que evangélicos são muito mais do que isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida. “São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.

Dilemas reais das mulheres evangélicas envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista. E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder.

Nova urgência para o novo ensino médio

O Estado de S. Paulo

Ante atraso na aprovação e na regulamentação das mudanças no ensino médio, cabe a deputados federais conjugar técnica e celeridade para garantir a implementação a partir de 2025

Mais uma vez está nas mãos dos deputados federais a missão de combinar celeridade e rigor técnico na análise e votação do projeto de lei que define novas diretrizes para o ensino médio. Na quarta-feira passada, os senadores aprovaram o projeto, mas como alteraram pontos importantes do texto que originalmente passou pelos deputados, caberá novamente à Câmara analisar as mudanças e dar prosseguimento à necessária reestruturação da etapa mais complexa da vida escolar. Necessária, porém já tardia: pelo calendário original, o novo modelo já deveria estar regulamentado, orientando as escolhas de milhões de adolescentes. Dado o adiantado da hora e o amadurecimento das discussões, é o momento de agir com rapidez, ou o País não poderá iniciar as mudanças na etapa a partir de 2025.

Há dissonâncias significativas entre o projeto saído da Câmara e o substitutivo da relatora no Senado, Professora Dorinha Seabra (União Brasil-TO), e esse será o maior desafio. A senadora fez mudanças em pontos centrais, como a questão da carga horária, a retomada do espanhol como disciplina obrigatória e a restrição à regra de notório saber para professores contratados em cursos técnicos. Não à toa, o deputado federal Mendonça Filho (União Brasil-PE), relator do projeto na Câmara, já anunciou que trabalhará para derrubá-las. Ele se baseia no consenso construído entre governo e oposição, depois de um intenso debate entre o ministro da Educação, Camilo Santana, e Mendonça Filho – não sem ironia o ministro de Michel Temer e principal responsável por formular a reforma aprovada em 2017. Ambos se desentenderam, tiveram discussões ríspidas ao longo da negociação, mas, ao final, chegaram a um entendimento.

O texto aprovado no Senado prevê que, das 3.000 horas de todo o ensino médio, 2.400 (80%) serão destinadas a uma grade comum para todos os alunos, que abrange aulas de disciplinas tradicionais como matemática e português. Atualmente, em razão da reforma aprovada em 2017, são separadas 1.800 horas para as disciplinas obrigatórias e 1.200 para o itinerário formativo escolhido pelo aluno. Para quem optar pelo ensino profissionalizante, a carga comum cai para 2.200 horas, restando 800 horas para aulas específicas dos cursos técnicos. A Câmara tinha fixado em 2.400 horas a grade comum para a maioria e 2.100 para o ensino técnico. Quanto à obrigatoriedade do espanhol, o texto aprovado no Senado prevê que as duas línguas estrangeiras obrigatórias (espanhol e inglês) poderão ser substituídas em algumas situações.

Apesar das dissonâncias em relação à Câmara – sobretudo na carga horária e na obrigatoriedade do espanhol –, o texto do Senado traz melhorias. Estabelece, por exemplo, um porcentual mínimo para a formação geral básica no ensino em tempo integral e prevê em lei tanto a formação continuada dos docentes quanto o monitoramento contínuo da implementação do Novo Ensino Médio. Há, no entanto, diversos pontos que saíram maduros do acordo na Câmara, um tênue ponto de equilíbrio entre as diferentes demandas e preocupações dos Estados, das instituições envolvidas nos debates e dos parlamentares ligados à educação. Foi o que permitiu chegar a uma fórmula que afastou de vez a absurda possibilidade de revisão completa da reforma, algo que chegou a ser cogitado por parte da esquerda no início da gestão de Lula da Silva.

Tão importante quanto a definição de quantas mil horas são necessárias para o aprendizado desta ou daquela disciplina – questão já exaustivamente pautada até aqui – será a adequação às novas normas que pretendem desengessar a matriz curricular. É preciso reconhecer que a etapa mais essencial já foi vencida: a construção de consenso sobre a natureza da reforma, com a necessidade de tornar os currículos mais convergentes com os interesses dos estudantes e um modelo mais atraente e relevante para o futuro dos alunos. Nos próximos meses, uma vez finalizada a tramitação no Congresso, ainda serão necessários ajustes operacionais, regulamentações estaduais e definição de metas para ampliação de matrículas. Mais um motivo para que deputados combinem técnica e celeridade na aprovação final. Uma política em alto nível, compatível com a educação de que o Brasil precisa.

Incompetências do Brasil

O Estado de S. Paulo

País cai, de novo, em ranking de competitividade. Eficiência governamental puxa piora

Ao ocupar a 62.ª colocação em uma lista com 67 países, o Brasil amarga uma nova queda, pelo quarto ano consecutivo, no ranking mundial de competitividade do International Institute for Management Development (IMD), uma escola de negócios suíça. Logo atrás, nesse pelotão digno de rebaixamento, penduram-se Peru, Nigéria, Gana, Argentina e Venezuela. “Nossas incompetências” explicam o desempenho pífio, nas palavras de Hugo Tadeu, líder da pesquisa no Brasil e professor da Fundação Dom Cabral, parceira da instituição europeia.

O levantamento, que chega à sua 36.ª edição, aponta os países com as melhores condições de prosperidade e concorrência externa. O ranking busca mapear pontos fortes e fracos das economias avaliadas para oferecer uma bússola a governos e empresas. Para isso, o IMD recorre a 336 indicadores. Parece que o Brasil aprendeu muito pouco.

Cingapura, Suíça e Dinamarca – economias pequenas – encabeçam a lista por fatores como bom uso de acesso a mercados do exterior, políticas públicas eficazes, infraestrutura avançada e educação básica sólida. Nada disso se encontra em abundância na gigantesca economia brasileira. Em 2020, o Brasil ocupava a 56.ª colocação e, desde então, já caiu seis posições. No ano passado, o País estava em 60.º lugar e agora recuou em razão da piora da eficiência governamental e da infraestrutura.

A baixa oferta de programas para a formação de gestores, a falta de eficiência do setor público e a burocracia excessiva resumem os desafios do País. Apesar do mercado de trabalho aquecido e do crescimento do PIB, custo de capital, legislação trabalhista – que, após a reforma aprovada no governo Michel Temer, vive sob constante ameaça do governo lulopetista –, contas públicas e barreiras tarifárias colocam o Brasil nas piores posições na esfera de políticas governamentais.

A reforma tributária, ora em fase de regulamentação no Congresso Nacional, favorece condições competitivas, mas não basta, sozinha, para impulsionar o País. É preciso ir além: “Estamos caindo porque estamos asfixiando a cadeia produtiva brasileira, o custo de capital está cada vez maior e porque tem ‘muito Brasília e pouco Brasil’”, avaliou o professor Hugo Tadeu. De acordo com ele, o País não tem empreendido esforços suficientes em ciência, tecnologia, inovação e formação de mão de obra. “Estamos deixando de lado essa agenda. E a gente não está focando em indústrias que sejam relevantes ao nosso crescimento.” Ou seja, o Brasil ainda segue a receita perfeita para o fracasso.

Ao se desdobrar os subitens da pesquisa, sinônimo de fracasso mesmo é a educação. Em habilidades linguísticas – capacidade de escutar, falar, ler e escrever –, o Brasil ficou em último lugar. O País ocupa ainda a penúltima posição tanto na formação básica como na superior. O aprimoramento da competitividade passa por valorização do conhecimento, melhoria da eficiência governamental e investimentos em infraestrutura. Impossível imaginar avanços em ciência, tecnologia e inovação com cenário tão desolador.

Olhar atento para quem vive nas ruas

Correio Braziliense

Entre janeiro e abril deste ano, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100, registrou 6.177 violações contra pessoas em situação de rua

Em janeiro, foi sancionada e publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei 14.821, que institui a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para População em Situação de Rua (PNTC PopRua). O objetivo é garantir os direitos básicos dessas pessoas, estabelecendo, especialmente, incentivos para a geração de empregos e o acesso à escolaridade.

Um mês antes, em dezembro de 2023, o Plano Ruas Visíveis foi lançado com a meta de fomentar políticas públicas para a população nessa condição de vulnerabilidade. Na ocasião, houve o anúncio de cerca de R$ 1 bilhão em investimento inicial.

Espalhados pelas cidades do país, esses rostos, que muitas vezes parecem perdidos, merecem um olhar cuidadoso do governo federal, de modo a incentivar que as esferas estaduais e municipais também foquem ações de auxílio.

Entre janeiro e abril deste ano, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100, registrou 6.177 violações contra pessoas em situação de rua. O levantamento é do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e revela aumento de 24% na comparação com o primeiro quadrimestre de 2023, quando 4.962 denúncias foram feitas ao serviço.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que a população de rua no Brasil aumentou quase 10 vezes de 2013 a 2023, passando de 21.934 para 227.087.

Muitas vezes negligenciado, desrespeitado e criminalizado, esse segmento da população não pode mais seguir fora do quadro da cidadania brasileira. Buscar soluções para a integração plena dessas pessoas deve ser uma responsabilidade da sociedade como um todo.

Movimentos civis precisam cobrar planos que envolvam eixos como assistência social, segurança alimentar, saúde, educação, trabalho e renda, além de habitação. A ideia de que as pessoas em situação de rua querem permanecer nessa condição é equivocada. Diversos são os motivos que levam a essa realidade, e conquistar uma moradia é fundamental no processo de restabelecer a dignidade. O cenário, extremamente complexo, apresenta rupturas de vínculos familiares, tornando necessária uma abordagem de resgate das relações. A exclusão econômica, que vai ficando pior com o passar do tempo, agrava o quadro de marginalidade.

Outro lado cruel que persegue esse segmento social, a violência contra moradores de rua apresenta muitas facetas, passando pelas questões físicas — como exposição de riscos à saúde, maus-tratos, abandono e agressão — e pelas psíquicas — como humilhações e constrangimentos.

Ampliar e criar medidas em várias frentes, com o máximo de participação popular, é o caminho para conduzir esses brasileiros ao ponto de cidadãos. As pessoas em situação de rua precisam caber no sistema, e o primeiro passo é que elas entrem na política orçamentária das administrações públicas. Ações estruturantes, coordenadas, transversais e intersetoriais são essenciais.

O crescimento dessa população pelo país evidencia a importância da revisão e do reforço das iniciativas de combate ao problema. É preciso consolidar os direitos e os mecanismos capazes de promover a reinserção social e econômica desses indivíduos. O Brasil não pode fechar os olhos para essa situação. É preciso priorizar essa pauta, observando as perspectivas dos que estão nessa condição, para que ações efetivas sejam implementadas e interrompam o avanço do número de pessoas vivendo nas ruas.

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