segunda-feira, 24 de junho de 2024

Demétrio Magnoli - O mercado que nos sabota

O Globo

O tabu econômico lulista só admite ajuste pelo lado da receita, condenando qualquer tentativa de cortar despesas

‘O governo do presidente Lula está enfrentando forte campanha especulativa e de ataques ao programa de reconstrução do país com desenvolvimento e justiça social’, afirmou a nota da direção do PT publicada há uma semana. Como? Pela “escancarada sabotagem ao crédito, ao investimento e às contas públicas, movida pela direção bolsonarista do Banco Central com a manutenção da maior taxa de juros do planeta”. O BC seria uma ferramenta de “setores privilegiados” que, “valendo-se da mídia associada a seus interesses financeiros, fabricam uma inexistente crise fiscal”.

A economia de mercado é uma conspiração — eis o conceito de fundo que orienta o texto partidário. Fosse, apenas, expressão da ignorância econômica petista, isso não passaria de uma curiosidade. Só que não é: a nota reflete o pensamento econômico de Lula, raiz do atual impasse fiscal.

Dólar, Bolsa, juros de longo prazo representam, na economia, o que temperaturas e precipitações representam para a ciência climática: indicadores das dinâmicas de um sistema complexo de interações. O PT e o presidente, porém, os interpretam como resultados de uma ação política premeditada. A economia atenderia às ordens de um Comitê Central oculto, formado pelos tais “setores privilegiados”, cujo executor seria o BC.

É um equívoco benevolente imaginar que as periódicas campanhas semioficiais contra Roberto Campos Neto configuram apenas uma tática política destinada a produzir um bode expiatório para as dificuldades do governo. Como atestou a catástrofe econômica fabricada por Dilma Rousseff, o lulismo acredita genuinamente que, para o bem ou para o mal, uma varinha de condão política determina o comportamento da economia. “Vontade política” e “sabotagem” — a linguagem ritual lulista desvela uma abordagem mística da economia.

A refutação da tese exposta na nota do PT tardou só 48 horas. A decisão do Copom pela manutenção da “maior taxa de juros do planeta” contou, na sua unanimidade, com o voto dos quatro diretores indicados por Lula. Como, depois disso, acusar a “direção bolsonarista do BC”? Fácil: basta alegar que os quatro escolheram a “traição”, alinhando-se aos “setores privilegiados” na “sabotagem” ao governo. Sem surpresa, é precisamente o que se diz em círculos próximos ao Planalto, num incipiente bombardeio à indicação de Galípolo para a presidência do BC.

Campos Neto “trabalha para prejudicar o país”, na frase insultuosa de Lula? O Copom unânime retrucou, certeiro, reafirmando que “uma política fiscal crível e comprometida com a sustentabilidade da dívida contribui para a ancoragem das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de risco dos ativos financeiros, consequentemente impactando a política monetária”. Tradução: a queda na taxa Selic depende, entre outros fatores, da “vontade política” do governo de perseguir o equilíbrio fiscal.

Nem tudo está errado na nota do PT. Ela, claro, não menciona a “democracia da meia entrada”, expressão cunhada por Marcos Lisboa e Zeina Latif, nem reconhece a farta distribuição de subsídios a setores empresariais nos governos lulistas anteriores e no atual. Mesmo assim, acerta ao alertar sobre a necessidade de “correção de um conjunto de desonerações tributárias, muitas injustas e injustificáveis”, algo que exigiria esforço conjunto do Executivo e do Congresso. O problema, no caso, é o acerto colocar-se a serviço do equívoco — da resistência ideológica à revisão das despesas públicas compulsórias.

A vinculação extensiva dos benefícios previdenciários ao salário mínimo faz com que cresçam bem acima da inflação — mas o governo desautoriza sistematicamente os tímidos ensaios de Simone Tebet para revê-la. Os pisos legais da saúde e educação experimentam aumentos reais persistentes e inerciais, sem melhorar a qualidade dos serviços. Mas o tabu econômico lulista só admite ajuste pelo lado da receita, condenando qualquer tentativa de cortar despesas.

O Orçamento engessado, consequência de um pensamento econômico envolto em misticismo, comprime o investimento público. “Sabotagem”? Sim: o governo sabota a si mesmo.

2 comentários:

Mais um amador disse...

" A economia de mercado é uma conspiração — eis o conceito de fundo que orienta o texto partidário.

Dólar, Bolsa, juros de longo prazo representam, na economia, o que temperaturas e precipitações representam para a ciência climática: indicadores das dinâmicas de um sistema complexo de interações. O PT e o presidente, porém, os interpretam como resultados de uma ação política premeditada. A economia atenderia às ordens de um Comitê Central oculto, formado pelos tais “setores privilegiados”, cujo executor seria o BC. "

😏😏😏

ADEMAR AMANCIO disse...

Esperar o quê?