segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Bets e paternalismo, por Irapuã Santana

O Globo

É uma lógica que infantiliza o cidadão, tratando-o como alguém que deve ser impedido de escolher

A recente decisão do governo de impedir beneficiários do Bolsa Família e do BPC de realizar novos depósitos em contas vinculadas a sites de apostas parte de uma boa intenção — proteger a parcela mais vulnerável da população do vício —, e isso é ótimo. No entanto a medida erra no alvo e na forma, com uma mera proibição.

Apostar não exige mais que um celular, um CPF e um Pix. A rede de cadastros paralelos, contas em nome de terceiros e promessas de “entrar para o time de investidores” faz com que a proibição funcione mais como obstáculo simbólico do que como mecanismo real de proteção.

O ponto central ignorado por essa política é o funcionamento das propagandas das casas de aposta. Elas não se apresentam como jogo, e sim como oportunidade de “renda extra com estratégia”.

O Estado mira o gesto final, mas ignora a teia de sedução que levou aquele incauto até ali. Sem mexer na engrenagem de convencimento, a política se torna mais um caso de enxugar gelo — a aparência de controle serve apenas para registrar uma ação governamental, mas não para transformar a realidade.

Esse tipo de medida aposta num modelo de paternalismo autoritário, em que o Estado pressupõe incapacidade total de discernimento dos beneficiários e, em vez de intervir na causa do comportamento, tenta apenas bloquear a ação final.

É uma lógica que infantiliza o cidadão, tratando-o como alguém que deve ser impedido de escolher, em vez de alguém que deve ser preparado para decidir com consciência. A psicologia e a economia comportamental já demonstraram que essa não é a direção mais adequada.

Daniel Kahneman — em seu livro “Rápido e devagar: duas formas de pensar” — explica que uma política pública sustentável precisa enfrentar comportamentos internalizados. Ele traz o exemplo de uma simples pergunta que, dependendo de como esteja posta, faz um país ter 5% de doadores de órgãos e leva outro — com características semelhantes — a chegar a 95%.

Por isso, em vez de simplesmente proibir, seria mais eficiente usar estratégias de nudge, entendidas como pequenas intervenções na arquitetura de escolha que alteram a percepção da decisão a tomar.

No caso das bets, esse empurrão reorganiza o ambiente de decisão para que o cidadão, mesmo em vulnerabilidade emocional ou financeira, possa acionar uma deliberação consciente e, então, escolher.

Pensando por alto, três medidas seriam mais eficazes no longo prazo do que a mera proibição: 1) criar um “modo protegido” no recebimento do benefício, destinando automaticamente parte do valor a gastos essenciais e oferecendo bônus ou cashback social para quem ativar essa proteção; 2) definir como padrão uma conta de uso guiado, permitindo que o gasto livre exista, mas com alertas e confirmações que façam o beneficiário refletir antes de desviar recursos essenciais para jogos; e 3) enviar alertas comportamentais e simuladores de impacto financeiro, mostrando de forma concreta quanto apostar compromete o orçamento do mês.

O Brasil ama um paternalismo — e é exatamente por esse motivo que nunca saímos do subdesenvolvimento. É preciso mudar, e logo.

 

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