Folha de S. Paulo
'A Palavra e o Poder' reúne textos sobre
democracia publicados pela Folha nos últimos 40 anos e artigos inéditos sobre o
tema
Conjunto de textos forma um painel do
pensamento crítico brasileiro, um diálogo entre tempos e olhares
[RESUMO] Livro "A Palavra e o
Poder", que chega às livrarias em novembro, revê as conquistas e impasses
do Brasil nas últimas quatro décadas, maior período de estabilidade democrática
da história do país. Obra apresenta artigos de opinião do acervo da Folha, que são reinterpretados
por textos inéditos de autores contemporâneos. Debates sobre desigualdade,
economia, inclusão, segurança e Judiciário perpassam o conjunto, no qual
passado e presente tentam decifrar o Brasil do futuro.
Em 40 anos de Nova
República, o Brasil teve dez mandatos e oito presidentes. Três deles foram
reeleitos, e dois acabaram destituídos por processos de impeachment. Essa
conta, que parece não fechar, indica parte das provações a que nossa jovem
democracia foi submetida neste período, durante o qual ela se mostrou resiliente,
entre crises, recomeços e ameaças —ao menos até aqui.
Metade desses presidentes —Fernando Collor de Mello, Michel Temer, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro— chegou a ser presa após deixar o cargo: a de Temer foi preventiva, as de Collor, Lula e Bolsonaro, após condenação. Lula teve a sentença anulada depois de 580 dias de prisão. Bolsonaro foi condenado, entre outros crimes, por tentar abolir violentamente o Estado democrático de Direito.
A Folha foi testemunha destes
capítulos turbulentos da nossa história recente, bem como dos avanços sociais
que marcaram as últimas quatro décadas.
O Brasil reduziu em mais de 80% a mortalidade
infantil e a extrema pobreza, ampliou em dez anos a expectativa de vida,
universalizou a educação básica, cortou o analfabetismo a um quarto do nível da
ditadura, conteve a hiperinflação, criou o SUS e
reduziu desigualdades de gênero e raça.
Além das reportagens, o jornal publicou
nestes 40 anos mais de 150 mil artigos de opinião assinados por intelectuais,
artistas e políticos que protagonizaram e pensaram os rumos da democracia
brasileira. Entre eles, estão nomes como Caetano
Veloso, Celso
Furtado, Delfim
Netto, Florestan Fernandes, Marina Silva, Oscar
Niemeyer e Sueli
Carneiro, além dos oito presidentes do período.
O supra-sumo desse acervo, com diversidade de
autores e perspectivas, está no livro "A
Palavra e o Poder: Uma Travessia Crítica por 40 Anos de Democracia
Brasileira", que chega às livrarias no início de novembro pelo selo
Civilização Brasileira, da editora Record.
Organizada por Rodrigo
Tavares, Flavia Lima e Naief Haddad,
a obra propõe uma leitura original da Nova República a partir de 40 pares de
textos. Cada par é formado por um artigo do acervo da Folha e uma
reinterpretação contemporânea inédita escrita por autoras e autores convidados.
O resultado é uma cartografia do pensamento
crítico brasileiro, um diálogo entre tempos e olhares nos quais o passado
conversa com o presente e ambos tentam decifrar o futuro do Brasil.
"Reunimos pessoas de gerações
diferentes, com pontos de vista diferentes, oriundas de experiências culturais
e econômicas diferentes para se ouvirem e para debater", diz o professor e
colunista da Folha Rodrigo Tavares, que apresentou a proposta do
livro em 2023.
"Tudo está devidamente retratado por
intermédio de artigos de opinião do jornal. E seria um desperdício não
aproveitar esses textos, que não têm de durar apenas 24 horas", afirma.
Ele explica que não se trata de uma mera
coletânea de textos. Em parceria com Flavia Lima, secretária-assistente de
Redação e editora de Diversidade da Folha,
e Naief Haddad, repórter especial do jornal, optou-se por retomar "os
debates dentro da Nova República convidando 40 pessoas que pudessem analisar,
criticar e contextualizar os textos históricos do jornal".
É daí que surgem dobradinhas preciosas como Boris
Fausto e Ana
Flávia Magalhães Pinto, Mario
Amato e Luiza Helena
Trajano, Abdias
Nascimento e Luiz Augusto Campos, Darcy
Ribeiro e Alessandra
Korap Munduruku, entre 36 outras do mesmo quilate.
O livro começa com o único artigo anterior à
Nova República e publicado sem comentário analítico —uma reverência ao Senhor
Diretas, como Ulysses
Guimarães passou a ser chamado após sua atuação pela redemocratização.
Os 40 pares de artigos são introduzidos por
um breve texto explicativo dos organizadores e estão dispostos em eixos
temáticos que percorrem a Nova República.
São eles a transição democrática, as disputas
do regime, as ameaças à democracia brasileira e os múltiplos desafios do
período: da Presidência, da segurança pública e do Judiciário, da desigualdade
e da economia, da inclusão e do desenvolvimento sustentável.
"Os 40 anos de democracia no Brasil
merecem celebração sobretudo neste momento em que a maior democracia dos
últimos dois séculos vê seus pesos e contrapesos submetidos talvez ao mais duro
teste de estresse de sua história", avalia Luiz
Frias, publisher da Folha,
que no livro dialoga com um texto de seu irmão e criador do Projeto
Folha, Otavio
Frias Filho, sobre a liberdade de expressão.
A curadoria dos textos revelou, contudo, uma
marca persistente. "O número de mulheres e pessoas negras nos espaços de
opinião do jornal era incomparavelmente menor do que o de homens brancos",
observa Flavia Lima. "Por isso, quisemos dar maior visibilidade a esses
grupos entre os comentaristas contemporâneos."
Enquanto os textos do acervo têm 76% de
autores homens e 85% autodeclarados brancos, entre os novos comentadores 69%
são mulheres e 37% pessoas pretas, pardas ou indígenas.
Já a escolha dos debatedores dos textos dos
oito presidentes da Nova República seguiu outros critérios. "Convidamos
jornalistas experientes para contextualizar aquilo que os ex-presidentes
escreveram, além de apontar as contradições presentes nesses textos",
explica Haddad.
De Sarney a Lula, passando por Collor,
Itamar, FHC, Dilma, Temer e Bolsonaro, todos assinaram artigos no jornal.
"São oito líderes que chegaram ao poder de forma legítima, da esquerda à
direita. E o texto de Bolsonaro, goste-se ou não, precisa entrar nesta
discussão", afirma Haddad.
Intitulado "Aceitem a democracia",
o artigo do ex-presidente condenado por tentativa de golpe de Estado revela o
abismo entre a palavra e a prática, e é confrontado por artigo de Sérgio Dávila,
diretor de Redação da Folha.
Para o historiador Leonardo
Weller, coautor de "Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil
da Nova República" (editora FGV) com o cientista político Fernando
Limongi, a reunião sem precedentes das vozes dos oito presidentes da Nova
República é um dos pontos altos de "A Palavra e o Poder".
"O fato de a Folha ter publicado textos
de todos eles fala por si só. Mostra que, desde a década de 1980, o jornal é o
locus de discussão e conseguiu contar a história da Nova República a partir dos
artigos de opinião escritos na época por grandes nomes", avalia.
Por outro lado, segundo ele, o esforço do
livro em retratar a redemocratização dos anos 1980 e a convulsão social e
política da última década acabou por reduzir o campo de exploração de "um
miolo de 16 anos de estabilidade e previsibilidade no país", que correspondem
aos dois mandatos de FHC e aos dois primeiros de Lula.
"São anos de consolidação da nossa
democracia, de expansão e sucesso de políticas públicas, como o SUS e o Bolsa
Família, que se tornaram políticas de Estado e melhoraram de formas jamais
vistas as condições sociais do Brasil, a despeito da estagnação
econômica", afirma Weller, para quem o livro ganha um tom mais pessimista
com esta escolha. "Toda democracia é imperfeita, e o nosso
presidencialismo tem problemas, mas isso não deve ofuscar o fato de que tivemos
16 anos virtuosos de políticas públicas e de estabilidade."
Parte imprescindível desta estabilidade se
deveu ao sucesso do Plano
Real, que está no centro do debate entre os economistas Delfim Netto
e Elena
Landau. Em texto de 2002, Delfim critica as políticas econômicas dos governos
FHC para além do Real, chamadas de "medíocres". Em 2025, Landau, que
foi diretora do Programa Nacional de Desestatização no BNDES (Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social) durante o governo FHC, defende
essas políticas e diz que "Delfim errou".
Para ela, o interessante da experiência de
discutir o artigo de Delfim "é a possibilidade de manter um diálogo de
visão divergente, algo importantíssimo que acabou no Brasil".
"O Brasil desaprendeu a discordar de
ideias de uma forma elegante. Neste sentido, o livro é uma grande contribuição
para a ideia do debate e da divergência", diz Landau.
Para além das discordâncias que percorrem o
livro, alguns desses diálogos são de atualização e complementaridade. É o caso
da discussão que a filósofa e colunista da Folha Djamila Ribeiro faz
a partir das questões feministas apresentadas pela escritora Rose
Marie Muraro em artigo de 1999.
Na visão de Djamila, o retrato da
desigualdade de gênero feito por Muraro se mostrou "infelizmente muito
atual", e a representatividade feminina no poder no Brasil ainda está
aquém daquela de países em graus semelhantes de desenvolvimento. Mas é preciso
considerar outros fatores, como raça e classe social, na hora de falar sobre
mulheres e poder.
"Neste sentido, o texto de Muraro fica
datado. O movimento feminista avançou bastante e consegue pensar a categoria
mulher de maneira mais profunda, muito puxado pelo feminismo negro, que trouxe
a ideia da interseccionalidade."
Essas interseccionalidades também aparecem
quando o debate sobre democracia e desigualdade social esbarra no racismo.
"Até o início dos anos 2000, a
democracia no Brasil não tinha chegado na cozinha", afirma o economista Marcelo
Paixão, professor do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora
Africana da Universidade do Texas, em Austin (EUA).
"Essa acabou sendo a grande tensão da
democracia do Brasil porque conquista-se a institucionalidade, mas, se as
desigualdades sociais continuam tão fortes, essa institucionalidade vai estar
sob risco."
Paixão, que dialoga com artigo em que o
arquiteto Oscar
Niemeyer relata seu encontro com um menino de rua, explica que isso se
dá porque a desigualdade social atrapalha a formação de consensos e de
objetivos comuns.
"Os extremos vivem como se apartados uns
dos outros, e as pessoas não conseguem estabelecer relações de solidariedade,
de compreensão e de mútuo suporte", afirma. "Nossa elite é muito
refratária a uma visão mais generosa de democracia, que tem de ser instrumento
de gestão de justiça social."
Ainda que ameaçada por estes fatores, a
democracia brasileira dá sinais de vitalidade não só onde ela é óbvia, como nos
avanços sociais do período, mas também onde ela quase sucumbiu, como na
condenação de um ex-presidente por tentativa de golpe.
"Não há democracia sem aquilo que
o [filósofo
alemão Jurgen] Habermas apresenta como esfera pública, um espaço onde
os cidadãos podem discutir e debater racionalmente assuntos de interesse comum,
algo que está muito fragilizado em vários países democráticos", afirma
Tavares. "A história mostra que as democracias se fortalecem quando o
debate é livre e informado. Por isso que, se este livro tem algum mérito, é o
de pôr o Brasil a discutir-se."
*Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha
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