sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Reforma tem de fazer escolhas estratégicas. Por Fernando Luís Abrucio

Valor Econômico

O sucesso depende da combinação de um bom diagnóstico dos problemas e do contexto reformista com uma estratégia adequada de implementação

A qualidade da gestão pública é fundamental para a legitimidade da democracia e para o desenvolvimento dos países. Reformas administrativas são muito relevantes e também muito complexas. Seu sucesso se deve à combinação de um bom diagnóstico dos problemas e do contexto reformista com uma estratégia adequada de implementação.

Liderado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), um projeto inicial sobre o assunto foi apresentado na Câmara. Há ideias e intenções boas na proposta, mas ainda há falhas e a falta de uma visão estratégica sobre os caminhos da mudança, da lei à prática.

O mérito primordial do projeto do deputado Pedro Paulo é abrir o debate de várias questões relevantes da gestão pública brasileira e que têm tido pouca atenção do sistema político. Há algumas propostas bem elaboradas e que merecem mudanças institucionais. Entretanto, o conjunto da obra está com muitos excessos e faltas onde não deveria haver.

Excessos de centralização, de uniformização e de instrumentos legais a serem votados, com um número grande de alterações constitucionais. Soma-se a isso a falta de tempo para maior debate e amadurecimento das ideias com atores relevantes que serão influentes no processo legislativo, bem como a ausência de uma visão mais estruturada e realista sobre a implementação de tais reformas.

O novo projeto de reforma administrativa carece, sobretudo, de seletividade estratégica, para usar um termo consagrado por Peter Evans em seus estudos sobre modelos estatais que deram certo pelo mundo.

Reformas muito amplas não só são difíceis de aprovar, mas são complicadas de implementar porque apostam e misturam muitas coisas sem saber ao certo de todos os efeitos. O grande diferencial de um modelo reformista refere-se à escolha do que é mais importante e daquilo que tem efeito bola de neve positivo, cujos impactos sobre outros elementos criam uma espiral virtuosa de mudanças ao longo do tempo.

Para se ter um parâmetro na experiência brasileira, basta lembrar que a última grande reforma administrativa do país foi feita pelo ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, no final da década de 1990. Partiu-se de um diagnóstico presente num documento governamental abrangente e demorou mais de dois anos para discutir com todos os atores relevantes, resultando num texto legal muito mais sucinto do que a proposta atual do deputado Pedro Paulo. Tentar mudar muitas coisas e em pouco tempo é um caminho estratégico muito perigoso, com grandes chances de errar demasiadamente.

Desde a redemocratização, as reformas do Estado mais bem-sucedidas no Brasil decorreram de uma combinação de processos democráticos, profissionalização e articulação de políticas públicas inovadoras com o federalismo, especialmente em prol de melhorias na inclusão social e garantia de direitos, como mostrou um grupo de pesquisadores da FGV-EAESP em artigo recente (“Brazil’s Public Administration and The Challenge of New Democracies: Promoting Social Inclusion”, Berman, E. et alii, Public Administration Review, 2025: 01-16). A grande lição é que a articulação de elementos, e não o comando centralizado e uniforme, que gera maiores condições de sucesso reformista.

Os méritos do projeto em apontar problemas reais da administração pública do país ganhariam maior potencialidade de transformação se compreendessem quais são os parâmetros gerais que devem orientar um modelo reformista exitoso. Quatro deles são essenciais para serem levados em conta, de modo a produzir ao final uma seletividade estratégica que separe o essencial do supérfluo dentro da proposta.

O primeiro parâmetro é o político. É fundamental construir coalizões reformistas, não somente para aprovar as medidas legislativas, mas principalmente para amadurecer a reflexão e preparar os atores para o longo processo de implementação.

Além disso, é preciso entender qual é o contexto em que está inserida a reforma. Hoje, o Congresso está num momento pré-eleitoral, com congressistas com muito medo de desagradar grupos de interesse, e com uma base governista muito frágil na Câmara. Isso significa pouco tempo para construir o processo deliberativo e a necessidade de escolher as brigas - todas a um só tempo é suicídio.

Ademais, o caminho estratégico envolve dizer o que pode ser feito agora e o que pode ser feito criando instrumentos de apoio e indução para engajar os atores e construir capacidades de implementação ao longo do tempo.

Uma análise do quadro político atual resulta, necessariamente, numa visão estratégica mais seletiva e que busque aliados no governo federal, nos governos subnacionais, em setores sociais e nos especialistas. Há mais chances de se ter um caminho melhor com uma proposta centrada em poucas prioridades com suporte político adequado. Até porque uma das prioridades mais claras, vinculada à situação remuneratória do Sistema de Justiça e de Controle, só irá adiante com uma coalizão que enfrente o tema em diálogo amplo com a sociedade.

O sistema administrativo brasileiro, especialmente após a Constituição de 1988, depende muito de sua relação com o federalismo. Trata-se de uma federação heterogênea e desigual, ao mesmo tempo que foram garantidos direitos de autonomia aos governos subnacionais, e de forma inédita aos municípios.

Isso leva à necessidade de articular os três entes federativos de forma colaborativa, pois a mera imposição centralizada é cada vez mais ineficiente e ilegítima, e ainda constituir mecanismos de fortalecimento das capacidades estatais locais, uma vez que os principais serviços públicos do país se materializam nas ações dos estados e, sobretudo, das municipalidades.

Boa parte da reforma trata de forma muito centralizadora e uniformizante o desenho institucional brasileiro, propondo entrar em salvaguardas político-administrativas dos governos subnacionais e fortalecendo em demasia uma perspectiva top-down, inclusive dando um poder normativo exagerado à União. Em vez disso, deveria se propor um modelo que criasse uma governança federativa mais colaborativa, com a participação de todos os entes no processo reformista mais amplo, da formulação à implementação.

Tal concepção mais centralizadora enfraquece a legitimidade normativa da proposta, pois o federalismo democrático é uma conquista do Brasil - foi ele que evitou que os erros (ou crimes) da política bolsonarista contra a covid-19 não se transformassem numa tragédia maior.

Esse modelo reformista também dificulta a aprovação congressual, dado que as bases eleitorais são muito afetadas pela dinâmica territorial local. Ressalte-se, ainda, que o desrespeito à heterogeneidade de condições pode levar ao aumento das desigualdades territoriais, o que prejudica uma parte expressiva dos cidadãos brasileiros.

Do ponto de vista federativo, o pior problema é ancorar-se num modelo uniformizante desenhado de Brasília, que gera perda de efetividade das reformas em termos de implementação.

Aqui está o terceiro parâmetro de um modelo reformista: as mudanças institucionais têm de pensar na cadeia de processos que vai favorecer uma implementação adequada das políticas públicas. Há na proposta pouco diálogo com o federalismo, mas também com os sistemas de políticas públicas e suas especificidades.

Por fim, a reforma ganharia maior seletividade estratégica se separasse sua proposta em dois grandes grupos: os que dizem respeito aos alicerces institucionais nacionais, que devem valer a todos e devem responder a poucas formas de mediação temporal e de apoio aos governos subnacionais, e os que se relacionam com a criação incremental de capacidades estatais, mais fortemente no plano municipal, o que exige uma visão de longo prazo alicerçada em governança federativa colaborativa, formas de indução e disseminação de boas práticas, bem como o respeito às autonomias locais.

Aqui, vale realçar o que pouco se fala: parte significativa das respostas administrativas deve ser customizada em seu contexto, além de, vale lembrar, várias inovações no Brasil terem nascido de “baixo para cima”, como ocorreu em programas exitosos que são hoje nacionais.

Se a reforma levar em conta esses pressupostos e produzir um modelo com maior seletividade estratégica, ela tem mais chances de ganhar apoios, ser aprovada e, sobretudo, gerar uma espiral positiva de longo prazo no campo da implementação.

Como exemplos nessa linha estão temas como o da remuneração dos poderes, aperfeiçoamento da figura dos temporários, a expansão e melhoria do governo digital, além de estímulos para a mudança no processo de seleção dos cargos em comissão - afinal, reformas de gestão não resultam só de leis, mas também da qualificação dos profissionais, de seu engajamento, de lideranças inovadoras e de coalizões entre gestores e políticos.

Mesmo com toda a complexidade da situação, não se pode perder esta oportunidade para aprovar alguns itens urgentes e outros que podem alimentar reformas incrementais futuras. Porém, isso só será possível qualificando o debate e construindo uma estratégia que conjugue democratização, profissionalização, articulação com as políticas públicas e o federalismo e, o mais importante, um modelo parcimonioso, enxuto e realista de pensar que reformas administrativas só dão certo quando articulam atores, instituições e processos de gestão, da formulação à implementação.

 

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