domingo, 19 de outubro de 2025

Ninguém quis ver o que aconteceu em Gaza, por Dorrit Harazim

O Globo

Grande jornalismo profissional aceitou que seu papel de testemunha-chave da História fosse bloqueado

Existe uma resolução do Conselho de Segurança da ONU aprovada dez anos atrás que obriga os Estados-membros à proteção de jornalistas durante conflitos armados. Não só porque jornalistas integram a população civil de países, como pela função social específica que desempenham no mundo. Assinada por unanimidade em 27 de maio de 2015, a 2222 especifica que “jornalistas, profissionais de mídia e pessoal associado” na cobertura de guerras não podem ser considerados alvo militar. Outra resolução, bem mais recente (2730, de 2024), aborda especificamente “os princípios da distinção, proporcionalidade e precauções em conflitos armados”, de modo a proteger civis e pessoal humanitário. Contudo, ao longo dos últimos dois anos, até o frágil cessar-fogo instaurado em 10 de outubro, tudo isso e muito mais foi pulverizado pela ação das Forças de Defesa de Israel (FDI) na Faixa de Gaza.

Até aí nada de muito novo, visto que resoluções da ONU valem pouco dependendo da força política ou do apadrinhamento do país infringente. Inesperado, mesmo para os tempos atuais de escassez moral no mundo, foi a docilidade com que o chamado grande jornalismo profissional aceitou que seu papel de testemunha-chave da História fosse bloqueado. Diana Buttu, advogada palestino-canadense especializada em Direito Internacional, resumiu assim o noticiário inicial do conflito na imprensa ocidental:

— O mundo nos informa que nada pode justificar o 7 de Outubro (data em que grupos terroristas do Hamas irromperam no sul de Israel, trucidaram 1.219 pessoas em poucas horas e fizeram 251 reféns), mas tudo o que Israel fizer pode ser justificado pelo 7 de Outubro.

No início do feroz assalto das FDI, também pareceu compreensível que, por razões militares, Israel vedasse o enclave a todo e qualquer representante de mídia independente. Ninguém esperava poder voltar aos tempos áureos do jornalismo de guerra dos anos 1960 e 1970, quando os Estados Unidos, atolados no Vietnã, perderam o apoio da opinião pública graças à independência dos jornais, ao arrojo dos enviados ao front e à liberdade que tiveram para trabalhar arriscando a vida. Nas guerras seguintes, tanto contra o Iraque quanto no Afeganistão, o Pentágono domesticou os grandes órgão de mídia — transformou os enviados especiais em embedded journalists. Atrelados às forças invasoras, grande parte da cobertura foi feita em movimentos cerceados, e o envio de imagens ficou sob escrutínio. Mesmo assim, não foram poucos os jornalistas internacionais que abriram mão da sedução de poder cobrir uma guerra do interior de um tanque e se aventuraram a explorar o morticínio por conta própria.

Em Gaza, nem isso. O bloqueio foi, é e continua a ser irredutível e absoluto. Coube então ao jornalismo profissional e amador de Gaza vestir coletes e capacetes e mostrar o que ninguém queria ver. De início desacreditados pelas grandes mídias mundiais, ou suspeitos de ser meros propagandistas do Hamas, toda uma geração de repórteres, cinegrafistas, fotojornalistas, radialistas e blogueiros palestinos vivenciou e testemunhou a história da guerra. Foi alto o custo humano desse trabalho insano. Levantamento feito para o canal Al Jazeera identificou 278 jornalistas e pessoal de mídia (palestinos em sua imensa maioria) mortos em Gaza por ação de Israel. Foi somente em agosto deste ano, transcorridos 22 meses de blecaute total, que mais de 250 veículos de mídia de 50 países emitiram um protesto coletivo contra esse apagamento de vidas e da História. Mas notas de protesto não bastam. Soa infantil, mas uma flotilha encabeçada por The New York Times, The Economist, Financial Times, Le Monde, The Guardian, El País, Haaretz, The Wall Street Journal e outros pesos pesados poderia ter sido tentada para chamar a atenção do mundo para o bloqueio. Consórcios multinacionais de jornalismo de qualidade, que já provaram imensa capacidade de articulação e investigação com empreitadas como os Panama Papers, se mantiveram de mãos atadas. No Brasil, os mesmos jornais que no governo Jair Bolsonaro tiveram a ousadia de se organizar para contornar o bloqueio de dados nacionais sobre a Covid-19 não consideraram mover montanhas para acabar com o bloqueio da verdade em Gaza.

Quem apaga a luz teme o que possa ser visto. Chegará o dia em que o governo de Benjamin Netanyahu precisará entreabrir os portões da desumanidade. A imprensa mundial acorrerá e fará descrições caudalosas da desolação. Tarde demais. O que aconteceu em Gaza ninguém quis ver.

 

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