Folha de S. Paulo
Em nome de uma criminalização da política o
debate sobre corrupção foi interditado desde o mensalão e a Lava Jato
O desafio redobrou devido ao desmonte de
práticas institucionais em vez da correção dos desvios
Que o Brasil viva, na conjuntura atual, um
malaise político não deveria surpreender. Trata-se de um traço constitutivo da
nossa experiência republicana, em que interregnos de entusiasmo cívico são
espasmódicos. Há um século, esse malaise já se manifestava no desencanto da
primeira geração republicana. Como escreveu Vicente Licínio Cardoso —cuja obra póstuma "À margem
da História da República" (1933) reúne reflexões amargas sobre os
fracassos dos governos republicanos—, "a grande e triste surpresa de nossa
geração foi sentir que o Brasil retrogradou".
Falava-se, como hoje, em retrocesso democrático e de políticas. Para Cardoso, a história "não deve ser fabricante de elogios nem depósito sebento de críticas póstumas"; ela deve apontar o fracasso rotundo do país em áreas vitais, como a educação pública —"nossa tragédia".
Na literatura, ninguém exprimiu o desencanto
cívico como Lima Barreto. Há pouco mais de um século, ele observou que "a
política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma
vulgar especulação de cargos e propinas". Pouco mudou. O debate sobre
cargos e propinas foi interditado desde o mensalão e
a Lava Jato, em nome de uma suposta "criminalização da
política". O resultado foi o desmantelamento de práticas institucionais,
em vez da correção dos desvios: jogou-se fora o bebê com a água do banho. O
desafio redobrou.
Menos de um terço dos brasileiros acredita
que o país está na direção certa, segundo a Quaest. A corrupção —da
qual o escândalo do INSS é
um exemplo— ganhou proporções faraônicas e capilaridade, envolvendo inclusive o
Judiciário. Criou-se um clima de "Vale Tudo". Agora ela se entrelaça
com a percepção de que o crime organizado penetrou as entranhas do Estado.
Soma-se a isso a avaliação —apressada e equivocada, como analisei aqui na coluna— de que escapamos por um triz da derrocada da
democracia.
O embaixador Rubens Ricupero evocou a imagem de "O Anjo
Exterminador", de Luis Buñuel: os convidados querem deixar a festa, mas, por um
motivo inexplicável, não conseguem transpor a porta de saída. "Essa imagem
lembra o que está acontecendo no Brasil neste momento."
A Nova República é marcada, contudo, por um
padrão de malaise distinto dos períodos anteriores. Há uma dimensão adicional
aqui com raízes institucionais: resultam do nosso desenho consensualista. O
presidencialismo de coalizão, tal como se consolidou, gera o que a teoria
democrática chama de baixa (ou inexistente) clareza de responsabilidade. Isso decorre da fragmentação
partidária e do caráter hiperminoritário do Executivo.
O que confere singularidade ao caso
brasileiro é a exacerbação desse problema por um Judiciário hiperprotagonista.
Quando a responsabilidade por decisões e resultados é difusa, prospera o
cinismo cívico: o eleitor não sabe a quem punir ou premiar. O Executivo
transfere responsabilidades ao Legislativo e ao Judiciário —e vice-versa. Mais
que isso: os próprios limites entre governo e oposição se esgarçam na formação
de coalizões inusitadamente heterogêneas.
Não há paralisia decisória, mas falta de
rumo.

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