Folha de S. Paulo
Sob verniz jornalístico, falar mal do STF
rende engajamento, cliques e público fiel, ansioso por uma dose de indignação
fantasiada de opinião
Acusar um magistrado de vender decisão é a
mais grave ofensa possível: atinge não só a pessoa, mas o próprio Judiciário
Somos um país do humor e da piada: não à toa,
o riso é a forma mais sutil de expor a ignorância, a arbitrariedade e as
mazelas sociais. Rir é uma resistência inteligente ao sofrimento, mas cujo
limite, sempre tênue, depende de uma leitura adequada do contexto.
Afinal, o humor depende de acordos culturais tácitos para existir. Essa regra
básica do discurso me veio à mente ao ler coluna de Lygia Maria,
nesta Folha,
sob o cafona (e que se pretendia polissêmico) título "O STF virou
piada" (19/10).
Não é a primeira vez que a colunista faz
críticas irresponsáveis ao Supremo Tribunal Federal. Em suas colunas, ela
reflete o senso comum de que o STF seria inimigo da "liberdade de
expressão" e da "democracia". Contudo, o maior problema é a
reprodução com verniz jornalístico, a desinformação que alimenta o ressentimento
e o ódio de setores extremistas.
Talvez seja o conveniente verniz de isenção
que assegure à colunista (e ela não está sozinha) espaço fixo em um dos jornais
mais influentes do país. Afinal, falar mal do STF rende engajamento, cliques e
um público fiel, ansioso por consumir uma dose de indignação fantasiada de
opinião.
A colunista defende que não haveria problema
jurídico algum no fato de o senador Sergio Moro (União Brasil-PR),
em vídeo, ter dito:
"Não, isso é fiança. Instituto para comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes".
Segundo ela, o comentário,
feito em tom de "brincadeira", não configuraria crime. A articulista
afirma ainda, com segurança inversamente proporcional à precisão, que
"Moro provavelmente nem sequer era senador" à época do vídeo, razão
pela qual o caso não deveria ter sido julgado pela corte. Errado.
A leitura do próprio acórdão deixa claro que
o vídeo foi publicado durante o exercício do mandato, em abril de 2023. Fico
imaginando como a Folha reagiria se um senador dissesse que o jornal
vende editoriais e aceita promoções de combo incluindo alguns colunistas pelo
mesmo preço.
A colunista também erra ao dizer que a frase
era genérica e sem contexto. Assistam o vídeo, leiam a transcrição: um senador
afirma que um ministro do STF recebe dinheiro para conceder habeas corpus. O
que a colunista mais queria? Que o senador tivesse inventado um preço?
Acusar um magistrado de vender decisão é a
mais grave ofensa possível —atinge não só a pessoa, mas o próprio Judiciário.
Há uma metonímia nesse processo que agrava o cenário. A vítima aqui é o decano
do tribunal, que, ao lado de outros ministros, têm sofrido
sanções internacionais fpor ter defendido a democracia
brasileira.
É nesse contexto que textos iguais a esse,
publicados por jornal de credibilidade nacional, somente servem para
desinformar e alimentar a ideia de o STF como inimigo ficcional. Afinal, a
maior parte dos leitores não é da área jurídica e não leu a decisão da corte. A
colunista, inclusive, se leu, não entendeu.
Também convém lembrar que o fato de essa frase
estar em vídeo de terceiro, ter sido feita numa festa junina ou
numa convenção lavajatista não altera a gravidade do seu conteúdo. O
recebimento da denúncia pelo STF exige apenas indícios mínimos de materialidade
e autoria, não uma discussão jurídica exaustiva.
Ou seja, a articulista, num exercício de
futurologia, já conseguiu cravar que o STF contrariou a jurisprudência do STJ mesmo sem ter sido julgado o mérito
do processo.
O STF não virou piada. Já a colunista...
*Advogado, é professor da PUC-SP e do IDP

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