segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O colunismo anti-Supremo, por Georges Abboud*

Folha de S. Paulo

Sob verniz jornalístico, falar mal do STF rende engajamento, cliques e público fiel, ansioso por uma dose de indignação fantasiada de opinião

Acusar um magistrado de vender decisão é a mais grave ofensa possível: atinge não só a pessoa, mas o próprio Judiciário

Somos um país do humor e da piada: não à toa, o riso é a forma mais sutil de expor a ignorância, a arbitrariedade e as mazelas sociais. Rir é uma resistência inteligente ao sofrimento, mas cujo limite, sempre tênue, depende de uma leitura adequada do contexto.

Afinal, o humor depende de acordos culturais tácitos para existir. Essa regra básica do discurso me veio à mente ao ler coluna de Lygia Maria, nesta Folha, sob o cafona (e que se pretendia polissêmico) título "O STF virou piada" (19/10).

Não é a primeira vez que a colunista faz críticas irresponsáveis ao Supremo Tribunal Federal. Em suas colunas, ela reflete o senso comum de que o STF seria inimigo da "liberdade de expressão" e da "democracia". Contudo, o maior problema é a reprodução com verniz jornalístico, a desinformação que alimenta o ressentimento e o ódio de setores extremistas.

Talvez seja o conveniente verniz de isenção que assegure à colunista (e ela não está sozinha) espaço fixo em um dos jornais mais influentes do país. Afinal, falar mal do STF rende engajamento, cliques e um público fiel, ansioso por consumir uma dose de indignação fantasiada de opinião.

A colunista defende que não haveria problema jurídico algum no fato de o senador Sergio Moro (União Brasil-PR), em vídeo, ter dito: "Não, isso é fiança. Instituto para comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes". Segundo ela, o comentário, feito em tom de "brincadeira", não configuraria crime. A articulista afirma ainda, com segurança inversamente proporcional à precisão, que "Moro provavelmente nem sequer era senador" à época do vídeo, razão pela qual o caso não deveria ter sido julgado pela corte. Errado.

A leitura do próprio acórdão deixa claro que o vídeo foi publicado durante o exercício do mandato, em abril de 2023. Fico imaginando como a Folha reagiria se um senador dissesse que o jornal vende editoriais e aceita promoções de combo incluindo alguns colunistas pelo mesmo preço.

A colunista também erra ao dizer que a frase era genérica e sem contexto. Assistam o vídeo, leiam a transcrição: um senador afirma que um ministro do STF recebe dinheiro para conceder habeas corpus. O que a colunista mais queria? Que o senador tivesse inventado um preço?

Acusar um magistrado de vender decisão é a mais grave ofensa possível —atinge não só a pessoa, mas o próprio Judiciário. Há uma metonímia nesse processo que agrava o cenário. A vítima aqui é o decano do tribunal, que, ao lado de outros ministros, têm sofrido sanções internacionais fpor ter defendido a democracia brasileira.

É nesse contexto que textos iguais a esse, publicados por jornal de credibilidade nacional, somente servem para desinformar e alimentar a ideia de o STF como inimigo ficcional. Afinal, a maior parte dos leitores não é da área jurídica e não leu a decisão da corte. A colunista, inclusive, se leu, não entendeu.

Também convém lembrar que o fato de essa frase estar em vídeo de terceiro, ter sido feita numa festa junina ou numa convenção lavajatista não altera a gravidade do seu conteúdo. O recebimento da denúncia pelo STF exige apenas indícios mínimos de materialidade e autoria, não uma discussão jurídica exaustiva.

Ou seja, a articulista, num exercício de futurologia, já conseguiu cravar que o STF contrariou a jurisprudência do STJ mesmo sem ter sido julgado o mérito do processo.

O STF não virou piada. Já a colunista...

*Advogado, é professor da PUC-SP e do IDP

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