O petróleo do pré-sal modifica a tradição de nossos ciclos econômicos: antes
mesmo de se tornar dinheiro, já está sendo prometido e repartido
Um novo ciclo econômico da história brasileira parece prestes a jorrar das
profundezas do mar. O ouro negro do petróleo do pré-sal modifica a tradição dos
nossos chamados ciclos econômicos: antes de se tornar dinheiro, já está sendo
prometido e repartido. É verdade que, em face da perspectiva dos milionários
royalties adicionais do nosso petróleo, convém ter regras para distribuição da
nova riqueza entre as províncias e para sua aplicação. As disputas em torno
dessas rendas já sugerem que, politicamente falando, elas fortalecerão o poder
regional e, por extensão, o caráter oligárquico e populista da política
brasileira. A falta de um norte seguro, fundado em prioridades nacionais e
sociais, e a pulverização dos recursos já sugerem que o povo será personagem
residual da partilha. Não seria diferente do legado de outros ciclos
econômicos.
Estou entre os que resistem à utilidade conceitual de ciclos como recurso
historiográfico para designar uma atividade econômica predominante. Em todo
caso, o que interessa é compreender o que sobrou e para quem sobrou de cada
ciclo da história prévia para refletir sobre o que sobrará do ciclo que se
inicia.
Começa que o ciclo do pau-brasil nos deixou o Brasil, mas não nos deixou
mais nada. A atividade econômica de extração da madeira vermelha para produção
de tintura para tecidos nada nos legou. O que importa nos ciclos econômicos é
entender o que criaram na economia cuja geografia definem. O ciclo do
pau-brasil criou riqueza alhures, como diziam os antigos, mas não aqui. Os
índios foram usados pelos franceses para derrubar, carregar e embarcar a
madeira em troca de miçangas. E do nome. Os índios, antes de serem índios,
receberam a designação de brasis, raiz do que viriam a ser os brasileiros. O
ciclo do pau-brasil não gerou uma economia nem gerou um país. Deixou para trás
o começo da devastação predatória. Nem mesmo ficou a árvore em quantidade
suficiente para que os brasileiros de hoje pudessem conhecer a madeira que dá
nome à pátria. Fui conhecer o pau-brasil por acaso, quase adulto, quando, nas
proximidades do Instituto Caetano de Campos, em São Paulo, vi uma franzina
arvorezinha, ao lado da qual pequena placa esclarecia que era pau-brasil. Só
muitos anos mais tarde comprei um remo de um índio tapirapé, do Mato Grosso, feito
de pau-brasil: a madeira vermelha, da cor de brasa, recoberta de laboriosos
traços de urucum, uma joia, uma obra de arte.
Foi o açúcar que, entre nós, demarcou uma primeira atividade econômica
estável e enraizada, reprodutiva, isto é, diversa da predação e do saque que
foram próprios do ciclo do pau-brasil. Houve, sem dúvida, um saldo social e
político da economia do açúcar. O primeiro deles, a escravidão e a sociedade
patriarcal, os costumes senhoriais, as desigualdades sociais profundas, a
divisão espacial do trabalho que criou a pecuária do sertão como economia
complementar da do açúcar. O açúcar criou o primeiro Brasil suntuoso, o das
igrejas luxuosas. O ouro que rebrilha nas paredes barrocas da Igreja de São
Francisco, na Bahia, dá bem a medida do muito que se ganhava e do muito que se
gastava. No Terreiro de Jesus, escravos negros arrastavam as dores de seu
banzo. O açúcar criou as condições materiais de um modo de viver e de pensar.
Um primeiro jeito de sermos brasileiros, divididos entre a gente de prol e a
gente ínfima, senhores e escravos. As amarguras e não as doçuras do açúcar
desenharam a cara do brasileiro e do Brasil.
Resisto a falar em ciclo porque o açúcar não imperou solitário. Como
aconteceu nos ciclos seguintes, outras atividades econômicas existiram ao mesmo
tempo que a do açúcar: além do gado, a farinha de mandioca, o milho e a farinha
de milho, o feijão, a produção doméstica e artesanal de tecidos e de cerâmica.
Enfim, um conjunto razoavelmente articulado de atividades econômicas.
O ciclo do ouro, que se define nos fins do século 17, nem centralizou a
economia já existente nem se sobrepôs a ela. Durou um século e seu apogeu não
durou mais que 20 anos, no século 18. Como o açúcar, o ouro, apoiado na
escravidão, não distribuiu riqueza, concentrando-a em poucas mãos e, sobretudo,
perdendo-a para a metrópole, que a perdeu para a Inglaterra. Mas criou uma
elite de intelectuais, animou as artes, engendrou poesia, encheu os territórios
das Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás de igrejas suntuosas, possibilitou
o barroco brasileiro, animou um sonho de liberdade.
O ciclo do café foi o que nos deixou o maior legado, trazendo prosperidade
nunca vista ao Sudeste. O café modernizou o Brasil e só o logrou porque se
livrou do trabalho escravo, disseminou o trabalho livre, promoveu a imigração,
diversificou as mentalidades e, pela primeira vez, gerou no País um
empresariado moderno e criativo. Foi o café que engendrou a economia industrial
e deu origem ao ciclo da indústria. O café criou uma economia voltada para
dentro, deu vida ao mercado interno, desdobrou a economia, libertou o
cafeicultor não só dos bloqueios da escravidão, mas também dos bloqueios da
propriedade da terra, diversificando-o numa classe de capitalistas
comprometidos com a dinâmica do próprio capital. Em decorrência, alargou
horizontes, dinamizou a economia.
No mesmo período em que o dinâmico ciclo do café revolucionava a economia
brasileira, o ciclo da borracha não tinha elasticidade. Criou uma precária
economia de refúgio na selva, baseada nas relações servis da peonagem, a
escravidão por dívida, sob a vigilância do pistoleiro. Quando muito, nos legou
o contraste de uma cidade moderna e num certo sentido suntuosa, Belém, com seu
Teatro da Paz, que recebia companhias europeias. Uma cidade dominada pelo art
noveau, de que ainda há numerosos vestígios. Um estabelecimento comercial,
Paris n"América, diz tudo sobre o esplendor sintético e redutivo da
borracha, com evidências em Manaus.
Mas o que foi essa economia predatória está também nos resquícios do Império
do Acre, cujo imperador caricato, Galvez, nos legou uma muralha de garrafas
vazias de uísque e champanhe no meio da selva, no que foi a capital de
choupanas de seu reino. Império inaugurado com um banquete simbólico: para o
povo, banana e cachaça; para a corte uma ceia trazida de Paris. Do menu consta
o champanhe servido: Veuve Clicquot.
O ciclo da indústria trouxe-nos a racionalidade industrial, disseminou
escolas superiores, criou universidades, modernizou as relações de trabalho, deu
vida a novas classes sociais, animou a superação de servos da gleba por
assalariados com contratos e direitos. Abriu-nos o horizonte da cidadania e da
democracia.
Este que poderá ser o ciclo do petróleo, no que se refere a legado, pode ser
antecipado em parte pelo que o petróleo fez em outras sociedades. Na Venezuela,
o óleo ampliou as desigualdades, não impediu que Caracas se transformasse numa
cidade rica cercada de imensas favelas. No Oriente Médio, criou luxos
impensáveis e misérias idem. É esperar para ver o que nos virá do fundo do mar.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia
da USP e autor, entre outros livros, de Uma arqueologia da memória social
(Ateliê Editorial)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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