Ao final do ano passado, o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Nelson
Barbosa, se reuniu com os secretários de Fazenda dos Estados no Conselho
Nacional de Política Fazendária (Confaz) e expôs um trabalho realizado pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), usando como base de dados as
notas fiscais eletrônicas das operações interestaduais com o ICMS.
Esse estudo fez estimativas de ganhos e perdas de cada Estado com a mudança
que viria com a alteração do ICMS, com vistas à sua simplificação e término da
guerra fiscal entre os Estados. Garantiu, na ocasião, que as eventuais perdas
que poderiam vir a ocorrer com a mudança seriam ressarcidas integralmente pelo
governo federal.
Como era de se esperar, o Confaz se fez de morto. Não contestou o estudo,
nem forneceu sua estimativa, que poderia ser divergente. É o que sempre ocorre,
pois inexiste concordância dos Estados em qualquer proposta.
Recentemente, nova tentativa foi feita pelo Ministério da Fazenda, através
do ministro Guido Mantega. Também não deu em nada. O Confaz continua barrando
qualquer tentativa de acordo e, pasmem, até agora não apresentou sua estimativa
de ganhos e perdas com as alterações no ICMS, apesar de o governo federal ter
apresentado a sua e solicitado que, caso houvesse divergência, que o Confaz
apresentasse seus dados.
A pergunta que se coloca é: por que todas as propostas de reforma do sistema
tributário têm fracassado? O motivo é simples: a principal mudança é em cima do
ICMS, que representa 83% da arrecadação dos Estados e passaria a mudar de nome
para Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), com uma única legislação federal, em
vez das 27 estaduais, e cobrado no destino em vez de na origem, como é hoje.
Essa mudança altera significativamente as receitas dos Estados e municípios.
Compete aos Estados o ICMS, que repassam 25% do que arrecadam a seus
municípios. De forma geral, os Estados das regiões Sul e Sudeste perdem com as
mudanças para os estados da região Nordeste.
Em decorrência disso, os governadores articulam com suas bancadas no Congresso
uma série de alterações à proposta do governo federal, para garantir que a
parcela do IVA que passaria a pertencer ao Estado seja maior do que arrecadam
com o ICMS.
Em poucos meses, essa disputa entre os Estados transforma a proposta
original num verdadeiro Frankenstein tributário, acabando com a simplificação
pretendida pelo IVA e, se fosse possível acordo entre os Estados, municípios e
governo federal, coitado do contribuinte, pois ocorreria notável elevação da
carga tributária para satisfazer todos os interesses em conflito.
Contribuinte. O que mais chama a atenção nos embates da reforma tributária é
a total ausência de foco em quem paga a conta do sistema tributário: o
contribuinte. É como se ele não existisse para o governo federal, estadual, municipal
e Congresso Nacional.
Como contribuição ao debate, este artigo trata dessa questão oculta nas
discussões do sistema tributário: quem paga a conta pública?
Para isso vamos abordar neste artigo apenas dois tópicos de interesse dos
contribuintes: regressividade e vantagem da justiça fiscal.
Regressividade. Uma das características do sistema tributário brasileiro é
sua alta regressividade. Quem ganha até dois salários mínimos (SM) paga 49% do
seu ganho em tributos e quem ganha mais de 30 salários mínimos, 26%. Assim, a
carga tributária é alta para a baixa renda e baixa para a alta renda. Isso
agrava a má distribuição de renda existente, reduzindo o consumo das classes de
renda média e baixa, indo na contramão do crescimento harmônico do País.
Essa regressividade existe por causa da elevada participação dos tributos
indiretos, que são os que não dependem da condição econômica do contribuinte.
Desde 1991, os tributos indiretos representaram cerca de 60% da carga
tributária. Isso se deve, fundamentalmente, aos impostos sobre o consumo, onde
o ICMS estadual é responsável por metade do ônus sobre o consumo.
Reduzir a tributação sobre o consumo significa diminuir/zerar as alíquotas
do ICMS, mas também, no que ainda faltar, da Cofins e do PIS para os produtos da
cesta básica. Não iria ocorrer perda de arrecadação, pois aumentaria a
atividade econômica e a formalização e reduziria a sonegação e inadimplência.
Além disso, cresce o poder aquisitivo da população, que passaria a comprar
mais.
Os tributos que incidem sobre o consumo estão matematicamente ligados aos
preços. Um produto cujo preço antes dos tributos seja de R$ 100, se o ICMS for
de 18%, que é sua alíquota mais geral, o acréscimo devido ao ICMS, PIS e
Cofins, eleva o preço final para R$ 137,46. O ICMS é responsável por dois
terços desse acréscimo!
Vantagem da justiça fiscal. Para o País ter desenvolvimento sustentável,
além de bons fundamentos macroeconômicos, é preciso um mercado interno forte e
em expansão. A má distribuição de renda da população e regressividade
tributária comprometem esses objetivos.
Compete ao setor público a responsabilidade para solucionar esses problemas.
Isso se faz via decisões sobre a receita e despesa públicas. Na receita, ao
promover a redução da regressividade tributária, com desoneração dos tributos
indiretos, como o ICMS, que majoram o consumo popular, e isenções/reduções de
tributos diretos, como o IPTU para imóveis de pequeno valor. Na despesa, ao
destinar maior parcela dos recursos orçamentários para atender as necessidades
básicas da população.
Essas políticas permitem ampliar e incorporar um maior contingente de
consumidores, gerando maior consumo, produção e desenvolvimento econômico e
social. A população de média e baixa renda é contemplada pela ação
governamental ao priorizar seus interesses no orçamento e na tributação. A
população de maior renda é contemplada pelos frutos do desenvolvimento
econômico e social, quando são gerados empregos e ganhos econômicos e
financeiros. Com maior justiça fiscal, a segurança nas cidades e no campo é
melhorada, beneficiando a todos.
O horizonte da justiça fiscal encontrará, sem dúvida, barreiras e interesses
divergentes. Além de esbarrar no conflito federativo pela disputa de receitas,
a reforma do sistema tributário deve avançar para reparar a injustiça fiscal e
permitir um maior desenvolvimento econômico e social ao País.
Se ficar na discussão interminável do conflito federativo entre governo
federal, estadual e municipal e querendo simplificar o ICMS para atender as
grandes empresas, o contribuinte continuará sendo ignorado e a carga tributária
vai continuar crescendo. É preciso avançar na discussão da reforma tributária,
mas o foco deve ser o contribuinte.
Amir Khair - mestre em finanças públicas pela FGV.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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