Não sou propenso a queixas nem a desânimos. Entretanto, ao pensar sobre o
que dizer neste artigo senti certa melancolia. Escrever outra vez sobre o
"mensalão" e sobre o papel seminal do Supremo Tribunal Federal? Já
tudo se sabe e foi dito. Entrar no novo escândalo, o do gabinete da Presidência
da República em São Paulo? Não faz meu estilo, não tenho gosto por garimpar
malfeitos e jogar mais pedras em quem, nessa matéria, já se desmoralizou
bastante.
Tentei mudar de foco indo para o econômico. Mas de que vale repetir críticas
aos equívocos da política petrolífera, que começaram com a redefinição das
normas para a exploração do pré-sal? As novas regras criaram um sistema de
partilha que se apresentou como inspirado no "modelo norueguês" - no
qual os resultados da riqueza petrolífera ficam num fundo soberano, longe dos
gastos locais, para assegurar bem-estar às gerações futuras -, quando, na
verdade, se assemelha ao modelo adotado em países com regimes autoritários. Até
aqui o novo modelo gerou apenas atrasos, custos excessivos e estagnação na
produção de petróleo, além de uma briga inglória (e injusta para com os Estados
produtores) a respeito de royalties que ainda não existem e que, quando
existirem, serão uma torneira aberta para gastos correntes e pressões inflacionárias.
A contenção do preço da gasolina já se tornou rotina, mesmo que afete a
rentabilidade da Petrobrás e desorganize a produção de etanol. O objetivo é
segurar a inflação por meio de artifícios e garantir a satisfação dos usuários.
Calo sobre os efeitos da redução continuada do IPI para veículos e do
combustível artificialmente barato. Os prefeitos que cuidem de aumentar ruas e
avenidas para dar cabida a tanto bem-estar... E os moradores das grandes
cidades que se munam de ainda maior paciência para enfrentar mais
congestionamentos.
E que dizer da tentativa de cortar o custo da energia elétrica, que teve
como resultado imediato a perda de valor das ações das empresas? E essa agora
de altos funcionários desdizerem o anunciado e, sem qualquer segurança sobre
como será ajustado o valor do patrimônio das empresas do setor elétrico,
provocarem súbitas altas nas ações? O pior é que ninguém será responsabilizado
por eventuais ganhos de especulação advindos da falta de compostura verbal.
Valerá a pena insistir em que o trem-bala é um desvario na atual conjuntura,
pois terminará sendo pago pelos contribuintes, como estão sendo pagas as usinas
mal licitadas? Para a construção destas, pelas condições estabelecidas pelo
próprio governo, praticamente só acorrem empresas estatais financiadas pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com dinheiro
transferido do Tesouro, quer dizer, seu, meu, nosso. E as rodovias e os
aeroportos? Uma novela que já vai longe, numa trama desencontrada. Tomara ainda
tenhamos final feliz...
Olhando em retrocesso, nos anos da grande ilusão, lá pelos finais de 1970 e
meados dos 1980, os "projetos-impacto", como a Transamazônica, a
Ferrovia do Aço e outros tantos, feitos a partir de decisões tecnocráticas nos
gabinetes ministeriais, nos estarreciam. Clamávamos também contra indícios de
corrupção. Não poderíamos imaginar que, depois das greves de São Bernardo do
Campo e das Diretas-Já, as mesmas distorções seriam praticadas por alguns que
então as combatiam. Criticava-se tanto o nepotismo e o compadrio, a falta de
profissionalismo na administração e de transparência nas decisões, e se
imaginava com tanta fé que o Congresso Nacional livre daria cobro aos
desmandos, que é difícil esconder a desilusão. As proezas de cinismo e
leniência praticadas por alguns dos personagens que apareciam como
heróis-salvadores são chocantes. Dá lástima ver hoje uns e outros confundidos
na coorte de dúbios personagens que alegam nada saber dos malfeitos.
O que entristece, porém, não é somente a conduta de algumas pessoas. É o
silêncio das instituições democráticas. A mídia fala e cumpre o seu papel.
Cumpre-o tão bem que é confundida pelos que sustentam os malfeitos como se
fosse ela, e não a polícia, quem descobre os desatinos ou como se servisse à
oposição interessada em desgastar o governo. Recentemente, algumas instituições
de Estado começaram a agir responsavelmente: o Ministério Público pouco a pouco
perdeu o ranço ideológico para se concentrar no que lhe é devido, a defesa da
lei em nome da sociedade. Os tribunais, especialmente depois de o Conselho
Nacional de Justiça ser organizado, começam a sacudir a poeira e a julgar,
dando-lhes igual o réu ser potentado ou pobretão. Mas o Congresso e os partidos
estão longe de corresponder aos anseios dos que escrevemos a Constituição de
1988.
O Congresso, que na Carta de 88, por sua inspiração inicial parlamentarista,
ficou com responsabilidades enormes de fiscalização, prefere calar e se
submeter docilmente ao Executivo. Voltamos aos tempos da República Velha, com
eleições a bico de pena e as Comissões de Verificação dos Poderes, que cassavam
os oposicionistas. Só que agora somos "modernos": não se frauda o
voto, asseguram-se maiorias pelos balcões ministeriais ricos em contratos e por
emendas parlamentares distorcidas. Com maiorias de 80% parece até injusto pedir
que a oposição atue. Como?
De qualquer maneira, é preciso bradar e mostrar indignação e revolta, ainda
que pouco se consiga de prático, mesmo sem esperança de vitória ou retribuição
imediata, como se fazia no tempo do autoritarismo. Não há bem que sempre dure
nem mal que não acabe. Chegará o momento, como chegou nos anos 1980, em que,
com toda a aparência de poder, o sistema fará água. Entre as centenas, talvez
milhares de pessoas que se beneficiam da máquina do poder e os milhões de
pessoas "emergentes" ávidas por melhorar sua condição de vida por
este Brasil afora, há espaço para novas pregações? Novas ilusões? Quem sabe...
Mas, sem elas, é a rotina do já visto, das malfeitorias e dos "não sei,
não vi, não me comprometo".
Sociólogo, foi presidente da República
Fonte: O Estado de S. Paulo, O Globo e Zero Hora (RS)
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