O Estado de S. Paulo
São as mudanças institucionais e de cultura,
e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem
fazer a diferença
Meio de penetra, também participo da festa dos 30 anos do Real, como responsável que fui, na presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por cuidar da credibilidade dos índices de preços da nova moeda. Apesar das turbulências desde então, os resultados principais do Real ainda persistem, como o controle da inflação, o fortalecimento das instituições financeiras e a abertura da economia. Duas explicações principais têm sido oferecidas para seu sucesso: a qualidade técnica dos economistas responsáveis e a liderança política de Fernando Henrique Cardoso, que fez com que o Congresso aprovasse as reformas necessárias para que o projeto ficasse de pé. Contribuiu também o sentimento de urgência criado pela inflação galopante, que facilitou sua aprovação.
De lá para cá, muitos outros planos foram
instituídos, como os de educação, cultura, mudança do clima, saneamento básico,
segurança alimentar, igualdade racial, juventude, política de mulheres,
direitos humanos, defesa, combate à corrupção e ciência, tecnologia e inovação.
Nenhum deles apresentou resultados de magnitude semelhante à do Plano Real e
alguns só ficaram no papel, com destaque para o fracassado Plano Nacional de
Educação de 2014, que agora se pretende reeditar. A pergunta que fica é por que
o Plano Real deu tão certo e os demais nem tanto.
Parte da resposta é que o Real, na verdade,
nunca foi um plano. A medida provisória que criou o Real, de 1994, falava de
“programa de estabilização econômica”, e na de junho de 1995, convertida na Lei
9.069, a expressão “Plano Real” aparecia na ementa, mas não no texto da lei,
que trata da reorganização do sistema monetário, tributação, dívida pública e
correção monetária. Não é, apenas, uma questão de palavras. O Real não foi um
plano como se entende usualmente, com metas detalhadas a serem cumpridas em determinados
prazos, mas um projeto de reforma institucional, alterando as regras de
funcionamento de uma série de mecanismos básicos da economia. Era um projeto de
inspiração social-democrata, que buscava organizar o espaço para uma economia
aberta, competitiva e mais igualitária, colocando limites ao uso abusivo do
poder do Estado e de setores privilegiados na apropriação dos recursos da
sociedade, através do endividamento e emissão de moedas sem limites. Para isso,
era necessário equilibrar as contas públicas, fechar ou privatizar empresas
estatais ineficientes e corrigir distorções tributárias. Não era um projeto de
Estado mínimo, já que não se questionava a importância de investimentos
públicos em áreas como educação, saúde, proteção social, segurança pública,
infraestrutura e modernização econômica. Mas o principal benefício que se
esperava de imediato era a melhoria da renda da população através do fim do
imposto inflacionário, como de fato ocorreu.
A estabilidade da economia era condição para
as outras políticas públicas, mas não suficiente. Esgotados os benefícios
iniciais do Real, as agendas sociais impulsionadas pelo Partido dos
Trabalhadores e diferentes movimentos sociais foram ganhando força, resultando
no sucesso inicial dos governos do PT, mas também em sua frustração com a crise
que culmina em 2015, da qual ainda não saímos. Parte desta crise se explica,
certamente, pelo fim do boom das commodities e a desorganização da economia
provocada pela “nova matriz econômica”; mas também pela proliferação de planos
que consistiam, sobretudo, em metas físicas que resultavam, quase sempre, em
crescimento da burocracia, engessamento dos gastos e corrupção, sem benefícios
mensuráveis para a sociedade.
São três, pelo menos, as diferenças entre a
maioria desses planos e o Real. A primeira é o contraste entre reformas
institucionais, que alteram as regras do jogo e o comportamento de diferentes
setores da sociedade, e o planejamento de tipo “soviético”, baseado em metas
rígidas; a segunda é a existência de equipes técnicas competentes e
amadurecidas, capazes de encaminhar soluções baseadas no estado da arte em suas
áreas de atuação; e a terceira é a presença de liderança política capaz de
negociar com diferentes setores da sociedade, incluindo o Legislativo, as
condições para que a equipe técnica possa desenvolver seu trabalho. Muitos dos
planos instituídos desde o Real ficaram pelo caminho porque estavam baseados em
diagnósticos equivocados, ou foram propostos e administrados por grupos de
interesse ou seus “representantes”, em que predominam, geralmente, os setores
mais organizados e seus parceiros na burocracia pública (os “anéis
burocráticos” descritos por Fernando Henrique Cardoso em um livro de 1975), ou
não contavam com o apoio de uma liderança política convencida de sua
importância e com legitimidade para defendê-los.
Políticas públicas, tanto quanto as políticas
econômicas, precisam, para resultar, de especialistas competentes que não errem
em seu diagnóstico e formulação, assim como apoio, legitimidade e engenhosidade
política para serem implementadas. São as mudanças institucionais e de cultura,
e não planos com metas ou orçamentos detalhados, que, a longo prazo, podem
fazer a diferença. Essa me parece ser a grande lição do Plano Real.
Um comentário:
Sei!
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