O Globo
O governador Cláudio Castro e as forças
policiais envolvidas no planejamento e ação praticaram uma chacina
Da forma como foi planejado, podia se esperar
o pior. Mas foi pior que o esperado.
A realidade, escreveu o saudoso Leonard
Cohen, é uma das possibilidades que não podemos nos dar ao luxo de ignorar.
Desde as primeiras imagens, sons, cadáveres e testemunhos da Operação Contenção
contra criminosos da cúpula do Comando Vermelho entocados nos complexos do
Alemão e da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, a realidade é uma só: na
terça-feira, 28 de outubro de 2025, o governador Cláudio Castro e as forças
policiais envolvidas no planejamento e ação praticaram uma chacina.
— Foi um sucesso — comemorou Castro, antes
mesmo do balanço final da caçada humana.
Até a noite de sexta-feira haviam sido
computados 121 mortos, entre os quais quatro policiais e 117 “suspeitos” ou
“bandidos”, na catalogação oficial.
A operação conseguiu fazer mais mortos do que presos (113), mais mortos do que feridos (15 policiais e quatro moradores), mais mortos do que os 104 palestinos eliminados por Israel em Gaza no mesmo dia. Tudo isso por zelo, visando a poupar os moradores daquele emaranhado de favelas, como proclama a versão oficial, ou por arroubo na execução da habitual “justiça sem julgamento”? O governador garante que tudo foi realizado e é investigado “com transparência absoluta”. Há que concordar com ele em um ponto: dentre todas as chacinas contra bandidos ou inocentes ocorridas no Rio (Acari, Candelária, Jacarezinho, Vila Cruzeiro, para citar apenas as mais infames), a da semana passada foi de fato transparente — ostensivamente transparente no resultado.
— O sentimento e a disposição de uma
sociedade em relação ao modo de tratar o crime e os criminosos constituem um
dos mais seguros termômetros de civilização de uma nação — advertia Winston
Churchill num de seus famosos discursos na Câmara dos Comuns, à época ainda
imperial.
— O reconhecimento sereno e imparcial dos
direitos de um acusado, ou de um condenado perante o Estado [...], é símbolo
que afere a força acumulada de uma pátria —assegurava ele naqueles idos de
1910.
Por esse critério, o Brasil foi, ainda é e
levará gerações até sair da barbárie. Segundo levantamento do Grupo de Estudos
dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminente (Geni/UFF), a Região
Metropolitana do Rio somou 707 chacinas na região desde 2007, com 2.865 civis
mortos nas ações policiais.
A sofreguidão com que brotaram manifestações
políticas de solidariedade a Castro sugere que, na eleição de 2026, o recurso à
violência como instrumento de segurança pública terá peso. O resultado de uma
primeira pesquisa de opinião encomendada pelo jornal bolsonarista Correio da
Manhã, realizada pela Arrow Pesquisas, mostra aprovação à operação policial por
68,8% dos fluminenses, ante 24,4% que desaprovam. Outras pesquisas haverão de
atestar se — ou quanto — esse levantamento é ideologicamente enviesado.
Em entrevista a Luiz Fernando Toledo, da BBC,
o professor da Universidade de Cambridge Graham Denyer Willis não se declarou
surpreso. Autor de “The killing consensus”e “Keep the bones alive” (ambos sem
edição em português), o acadêmico estuda a atuação de forças policiais no
Brasil.
— Não se trata realmente de uma questão de
boa ou má operação policial. Não há nada de novo no Comando Vermelho, nem na
polícia violenta, nem no tráfico de drogas, nem na chegada de Castro ao poder.
Então, por que agora? Foi uma performance pública de Castro para preencher um
vazio na política de direita e atrair Donald Trump, além de se inserir no mapa
político nacional e internacional — diz ele.
O salto na visibilidade do governador ocorre
poucos dias antes de seu julgamento sob a acusação de abuso de poder político e
econômico durante a campanha de 2022. Em tese, uma condenação no Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), presidido pela ministra Cármen Lúcia, poderia levar à
cassação de seu mandato. Apenas em tese, pois o empenho de alguns ministros
daquela Corte para julgar o caso nesta terça-feira, como agendado, parece ralo.
Um oportuno II Simpósio Internacional de Bruxelas, organizado pelo Instituto de
Estudos Jurídicos Aplicados na mesma data, justificará algumas ausências
causídicas do país.
Ficará em chão brasileiro o cadáver
decapitado de Yago Ravel, de 19 anos, junto aos outros 120 mortos na
operação-sucesso do governador.
— Quem disse que foi a polícia que cortou a
cabeça? Os criminosos podem ter feito novas lesões nos corpos para chamar a
atenção da imprensa — diz Felipe Curi, secretário da Polícia Civil do Rio de
Janeiro.
Poder, podem — e é para isso que uma
investigação independente e criteriosa se faz necessária.
Podia se esperar o pior. Mas foi pior que o
esperado.

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