O Globo
As prisões são incomuns, mas não inexistentes
A dúvida emergiu da condenação, pela Justiça espanhola, de três torcedores do Valencia por insultos racistas contra Vini Jr., craque do Real Madrid e da seleção brasileira. O trio foi sentenciado a oito meses de prisão e banimento dos estádios por um par de anos, por crime contra a integridade moral com agravante de discriminação racial. Não irão ao cárcere, porque a legislação local permite que penas de até dois anos sejam suspensas, em casos de crimes não violentos, se o juiz acreditar que o réu não voltará a delinquir. A decisão, por inédita, foi celebrada.
Diferentemente da Espanha, o Brasil
tem leis que criminalizam racismo e injúria racial. Tornaram-se comuns as
denúncias. O senso comum sugere que condenações são raras, prisões
inexistentes. Solicitei informações ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Os números apurados pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do
Sistema Carcerário permitem ver o copo meio cheio ou meio vazio. Desde 2022, o
país julgou 6.466 processos relacionados a crimes raciais. Houve condenação em
836. Significa que em apenas 13% dos julgamentos a denúncia foi considerada
procedente. A proporção é baixa, mas não é nula.
As prisões são incomuns, mas não
inexistentes. O CNJ identificou 299 mandados por crimes raciais, dois deles com
indivíduos foragidos. Assim, o Brasil tem hoje 297 racistas presos por
intolerância e/ou injúria racial de cor e/ou etnia; injúria preconceituosa ou
injúria preconceituosa em razão de cor, etnia ou raça; crime análogo à
intolerância e/ou injúria racial, de cor e/ou etnia; ou análogo à injúria
preconceituosa em razão de cor, etnia ou raça. São crimes previstos nas leis
7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de cor ou raça, e
14.532/2023, que tipifica injúria racial como racismo e impõe pena para racismo
em ambientes esportivos e artísticos, recreativo e religioso.
— O fato de haver pessoas presas por crimes
raciais demonstra que o Brasil está caminhando. Isso pode ser reflexo do
esforço que vem sendo feito para pautar a questão racial no Judiciário — afirma
Karen Luise Souza, juíza auxiliar da presidência do CNJ e integrante do
coletivo que, desde 2017, realiza o encontro e o fórum nacional de juízes e
juízas negros, para tratar dos impactos do racismo do sistema judicial.
A predominância de condenações a penas
alternativas, como prestação de serviços sociais, pode explicar a diferença
entre o total de sentenciados e de presos (provisórios ou não). Na base de
dados do CNJ há 10.925 processos pendentes — que não foram julgados — em
tribunais estaduais, federais e na Justiça Militar de São Paulo.
O número de julgamentos é crescente: 1.175 em
2022; 3.631 no ano passado; e 1.660 em 2024, até aqui. Uma hipótese é a decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF),
em outubro de 2021, de equiparar o crime de injúria racial ao de racismo — e
torná-lo, portanto, imprescritível, como manda a Constituição Federal. O
relator foi o ministro Edson
Fachin, e a tese venceu por maioria; o único voto contrário foi do ministro
Nunes Marques, indicado à Corte em 2020 pelo então presidente Jair
Bolsonaro.
Até ali, era comum classificar como injúria
de todo e qualquer crime racial. A defesa dos réus recorria a estratégias
protelatórias para evitar a condenação até a prescrição do delito. O
entendimento do STF e, mais tarde, a promulgação da Lei 14.532/2023
constituíram ferramentas para frear a impunidade.
Mas não significa que ela inexista. A
disparidade entre total de processos, julgamentos e condenações em tribunais,
Brasil afora, dá a medida de quanto ainda falta caminhar para punir o racismo
nosso de cada dia. O TJ-BA conta 5.425 casos pendentes, quase metade do total
do país. De 2022 a 2024, foram julgados 4.145; só 150 geraram condenações, 4%
do total. Pelo volume de denúncias, o MP vê racismo demais; pela fração de
sentenças procedentes, os juízes veem de menos.
No Rio de Janeiro, no período 2022-2024, o
TJ-RJ julgou 36 casos de crimes raciais; em 12 houve condenação. O estoque a
ser apreciado é de apenas 382. Em São Paulo, há 132 processos pendentes; em
dois anos e meio, o TJ-SP julgou 26 e condenou em 20. Há sinais de que: 1)
quase não há crime racial em solos fluminense e paulista; 2) as vítimas não
denunciam, e as ocorrências estão subnotificadas; 3) a polícia não leva adiante
as investigações e não conclui os inquéritos; 4) o MP arquiva, em vez de
denunciar.
A consulta ao CNJ jogou luz sobre realidade
pouco avaliada: a forma como o sistema de Justiça recebe e trata as denúncias
de racismo. Perguntas importantes foram respondidas: quantos processos,
julgamentos, condenações, prisões. Outra avenida de indagações se abriu.
Sigamos nela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário