O Estado de S. Paulo
Guerrear contra um oponente que não tem poder
de fogo poderia ser uma boa estratégia de Trump. Mas não é esse o caso da China
Agora temos pouco mais de 100 dias de governo
Trump, e sabemos que jamais poderíamos chamar esse mandatário de monótono. Em
verdade, são 100 dias que mais parecem ter durado uns três anos e tornam o
governo Biden algo longínquo em nossa percepção do tempo.
Se os 100 dias foram agitados, o futuro parece nos reservar a incerteza. Todos eles parecem alicerçados numa forma de fazer política e buscar poder que norteiam o comportamento de Donald Trump. Esta é a sua maneira de conduzir o governo: ameaçar com a guerra para se posicionar de forma privilegiada.
De fato, o governo Trump mais parece uma
metralhadora giratória, iniciando guerras em todos os campos da vida americana.
Primeiro, foi a guerra imigratória, depois a guerra contra as opções sexuais,
contra as preocupações climáticas e o serviço público americano. Depois vieram
as mais econômicas, em que se destaca a guerra comercial das tarifas, que jogou
o mundo em grande incerteza. Agora veio a guerra orçamentária.
Importa tratarmos aqui das mais
autodestrutivas: a comercial e a orçamentária. Comecemos pela guerra comercial,
fazendo uma referência à frase recentíssima de Warren Buffett, que ninguém pode
dizer que não entende de capitalismo: “Comércio não deveria ser uma arma”.
Lógico que a história sempre mostrou o comércio como guerra, mas o mundo tem
buscado, nos últimos anos, uma competição com regras civilizadas.
A guerra comercial segue como uma coleção de
bravatas e recuos. Mas os sinais já são sentidos. O mundo todo está em compasso
de espera, dada a esperada reorganização da localização da produção e dos
fluxos comerciais. Mas engana-se quem acha que a questão é o comércio entre os
Estados Unidos e a China. Há muito mais que isso e as conexões que vão muito
além da territorialidade das duas potências são imensas.
Trump, hoje, tem a desvantagem de ter
entregue seus objetivos já em seu primeiro mandato. A China, com administração
muito mais estável, soube entender o significado econômico dos interesses que
se aliam em torno de Trump. Ao mesmo tempo, promoveu políticas para amenizar os
efeitos das barreiras tarifárias americanas. A crise que se impõe à economia
chinesa a partir da guerra tarifária é uma crise de demanda. O risco é que o
grande mercado comprador dos produtos chineses, a economia americana, reduza
drasticamente suas compras.
A economia chinesa passou, no entanto, anos
sendo preparada para enfrentar um segundo Trump. Não foi só para o sudeste
asiático que parte da produção chinesa se moveu. As cadeias produtivas chinesas
espalharam segmentos operacionais por diversos países em todos os continentes.
Assim, a China passa a exportar produtos de origem chinesa a partir de outros
países para os Estados Unidos, por exemplo.
Ao mesmo tempo, iniciativas como a Rota da
Seda e as negociações na África e na América Latina para estreitamento de
conexões produtivas e comerciais significam que, com certa rapidez, suprimentos
com origem nos Estados Unidos podem ser rapidamente substituídos por outros
parceiros. No caso brasileiro, a soja é o principal exemplo.
No caso americano, a guerra tarifária deve
ser entendida como uma crise de oferta. Um choque de custos já é uma realidade,
mas não devemos entendê-lo apenas como aumento no preço das “blusinhas”. O mais
delicado é o choque de custos para as empresas que, para ganhar eficiência,
construíram parcerias com produtores pelo mundo. Agora, estes enfrentarão um
achatamento de suas margens de lucro, por custos maiores ou de seus mercados
consumidores.
Guerrear contra um oponente que não tem poder
de fogo poderia ser uma boa estratégia de Trump. Mas não é esse o caso da
China. Anos de avanço de quem se tornou uma espécie de “fábrica do mundo”, com
enorme sofisticação tecnológica e construção de parcerias pelo mundo afora
podem significar uma grande vantagem contra uma política americana que,
contrariando todo o discurso de décadas de multilateralismo, aposta apenas no
próprio sucesso.
Na guerra orçamentária, a ideologia Trump
mostrou-se de forma mais desavergonhada. Cortes inéditos na maioria das
despesas, com ênfase em saúde, educação, assistência social e na transição
verde. A preservação dos gastos em segurança e defesa reforça a noção de que
Trump preserva sua aliança com os grandes contratos governamentais para as
empresas americanas. Só que ir tão fundo no desamparo social pode custar muito
à sociedade americana.
Para retomar Warren Buffett, na semana de sua
fala anual: “Não acho uma boa ideia tentar projetar um mundo em que alguns
países dizem hahaha, nós ganhamos. Talvez seja por isso que o fundo de Buffett
esteja com níveis de liquidez imensos. Talvez ele tenha receio de que a
autodestruição de Trump faça derreter o valor dos ativos no mercado
internacional. Quando esse risco está no ar, melhor manter dinheiro em caixa do
que correr o risco de perdê-lo na desvalorização de títulos e ações.
Creio que o mundo mereceria líderes mais
responsáveis pelo futuro.
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