Lendo hoje um artigo do articulista Demétrio Magnoli fiz-me, instintivamente, a pergunta derivada da sugestão que ele dá. Por que não uma intervenção federal na Segurança Pública do Rio para desativar o comando faccioso dessa barbárie e substituí-lo pela ação civilizatória do Estado nacional? Mesmo com algum déficit cognitivo sobre a realidade, essa decisão teria, de saída, o mérito do cumprimento de um dever. Recuperaria parte das energias cívicas cujo adormecimento leva ao apoio resignado à guerra.
Contudo, a
missão de analisar não permite quem a assume limitar-se à indignação civil com
a matança. A indignação leva a imaginar uma vontade política que viesse em seu socorro
e, mais do que isso, a supor essa vontade suficientemente poderosa para fazer
da intenção um gesto, colhendo, da virtude de ambos, resultados positivos. O
sentido ilusório dessa sequência virtuosa logo mostra, ao analista que assiste da
calçada, guarda-chuva em punho, à banda tocar na chuva, que ela não toca assim.
Mas quem, exposto ao aguaceiro da política, mal consegue enxergar a rua em que
pisa e toca, será cobrado, sim.
A resposta é
lenta e talvez não venha. Está inibida por um número. São 63%, ou 72%, o das pessoas
que apoiaram e um contingente equivalente acha que operações como aquela devem
se repetir. Essa "voz do
povo", numa democracia eleitoral tensionada, é recebida como a "voz
de Deus" por uma elite política desatenta e confusa. Os responsáveis pela
direção política da sociedade seguem o comando dos desesperos individuais e
familiares de uma população entregue a uma violência cotidiana quase sem
limites. Jogam parados em vez de assumirem o comando, guiados por uma razão de
ordem pública. Governantes deixam-se governar pelo medo dos governados, imaginando
que o fazem em benefício próprio. Engano. Matam a fonte de energia do poder que
detêm. Quando o procurarem, será líquido.
Quem então ousará desafiar em público esse senso comum, se quem tem a missão de governar não o faz? Não é de esperar, por exemplo, que intelectuais públicos e artistas de grande reputação o façam. Se algum o fizer (e pode ser que o faça) será por sua conta e risco e não uma ação coletiva de engajados numa causa de apelo cívico. Uma coisa é mobilizar contra a blindagem de parlamentares, sempre vidraças para os estilingues de todas as classes sociais indignadas. Outra coisa é contrariar um sentimento popular. Para que uma mobilização civil desse porte ocorra sem se tornar um mal entendido, é preciso que o sentimento popular seja interpretado para além do seu sentido denotativo.
Os 63% da
população do Rio que apoiam a operação apoiam não por escolha, não porque
gostem de guerra, mas porque acham que esse é o único caminho possível para
tentar ter paz. Ninguém está lhes apontando outro caminho menos incerto que
possa atender a essa necessidade imediata, que não pode esperar porque medo e mortes
ocorrem aqui e agora. O que fazer com isso? Se ninguém parece saber, não admira
que a maioria siga quem promete solução rápida. Pessoas insensíveis ou malvadas?
Não. População desesperada. Indivíduos e famílias aquém da cidadania. Apoiam a
matança porque estão convencidos de que resta matar para não morrer. É engano
também, pois na prática significa opção por morrer atirando. Mas cresce e pode
se tornar convicção inegociável da massa oprimida pela violência, concentrada
ou difusa. A ausência de outra possibilidade crível é uma lacuna cognitiva deixada
por governantes que esperam tirar partido, por tempo indeterminado, do
desespero dos governados.
Uma dúvida sobre
o que move o governador fluminense é se ele tem, ou não, consciência de que a
linguagem (fala e ação) que está importando do léxico trumpista vai esbarrar em
instintos de agregação social e de compaixão humana intrínsecos a redes de
sociabilidade não criminosa, que subsistem entre nós, no meio e apesar da
calamidade da segurança pública. Por exemplo, quantas lideranças evangélicas
poderão se comprometer com uma política permanente de terra arrasada e almas
endurecidas? Suponho que aliados reticentes, um pouco mais lúcidos, estejam
lembrando a Castro, ao posarem para fotos com ele e afinarem sua retórica
eleitoral pela dele, que todos eles estão no Brasil.
A atitude pacificadora
- como uma pauta nacional agregadora - e a da polarização, como estratégia e
programa contra o fascismo, a necropolítica ou outro conceito forjado em bolhas
ideológicas para nomear o inominável, oferecem-se, mais uma vez, às forças democráticas,
como alternativas distintas. A primeira
alternativa isola a extrema-direita. A segunda aceita o duelo dentro do terreno
que ela prefere. Vamos ver qual das duas o governo federal vai escolher. Se é
que vai escolher alguma.
A causa da
democracia está sendo perdida no coração do povo. Esta coluna tem insistido
muito na necessidade crucial da pacificação política. Sua ausência é que
submete as ações e inações do governo nacional e de governos estaduais a uma
lógica eleitoral absoluta e impede que haja, de fato, outras possibilidades
além da decretação, pela direita, da guerra, no lugar da promoção da segurança
pública e, pela esquerda, a reprodução da atitude omissa, negacionista da
insegurança pública.
É inútil esperar
que essas duas partes se movam por si mesmas, em outra direção. Estão ocupadas,
uma com a outra. Só farão algo diferente se a parte da sociedade que ainda não
crê na matança nem engole a conversa de quem diz que ela é culpa "do
outro" conseguir ter expressão política independente, fora dos polos. Os efeitos positivos de uma hipótese dessa
(se ela acontecer, o que, ademais, não é certo) irão demorar, claro, mas sua
demora será ainda maior se o primeiro passo continuar sendo adiado.
A curto prazo
não há solução visível para a segurança pública. Talvez seja possível apenas
reduzir danos, se a omissão deixar de ser a regra. O que já será algo a
comemorar, discretamente. Acenos a soluções de curto prazo só produzirão mais
enganos e com eles, mais desespero e tragédia. O país precisa de lideranças que
compartilhem com ele, nessa hora de extremo aperto, lágrimas pelo sangue
derramado e o suor de um agir que corra riscos. E políticas públicas verazes,
voltadas ao médio e ao longo prazo.
Apesar de tudo
isso, o discurso apostolar de que "ninguém se preocupa com as
vítimas" pode ser terno e render simpatia, mas é mal informado ou
demagógico, ou seja, ou não é verdadeiro, ou não é veraz. Tanto no plano nacional como no próprio Rio
de Janeiro (para não falar de outros estados) existiu ou existe labor inteligente
e política pública formulada sob a cortina de fumaça da guerra da
extrema-direita contra e ao lado do crime organizado e do binarismo eleitoreiro
do plebiscitarismo populista.
No Rio, na
virada do século passado, levantou-se, publicamente, parte do véu da “banda
podre” das suas polícias, iniciativa de Luiz Eduardo Soares, quadro intelectual
e político que então passava por um cargo no governo estadual, tentando
conectar ação governamental republicana a conhecimento qualificado do problema.
Caiu pela falta de força política de uma empreitada voluntarista, pioneira e quase
solitária. Expectativas maiores despertaram, cerca de uma década depois, ações
com jeito de política pública entabuladas em momentos da gestão do Cel,
Beltrame na Secretaria da Segurança Pública, embora elas não tivessem (ou
talvez porque não tivessem), ambição reformista equivalente à da intervenção de
Soares. Perderam-se numa memória controversa e no esgarçamento moral do
governo, perante a condenação penal do governador. Dessas experiências
estaduais do Rio parece não ter sobrado rastro.
No plano
nacional não há porque se pensar em partir do zero. É verdade que se deu o
aborto político, no final do primeiro ano do governo Lula 1, de uma experiência
inovadora de política pública coordenada pelo mesmo Luiz Eduardo Soares à
frente da Secretaria Nacional da Segurança Pública. Foram dez meses durante os
quais parecia que o governo federal resgataria um elo republicano perdido, três
anos antes, no Rio de Janeiro. Mas não só isso. Foi também o primeiro sinal de
que a segurança pública deveria ser vista como interesse nacional e sendo ponto
da agenda política de um governo de esquerda.
O sinal não
vingou naquele momento. Trombou com outra lógica, hegemônica no núcleo político
do governo. Mas o ponto manteve-se vivo, pois de lá pra cá a necessidade da
responsabilização federal só fez aumentar. Pela obviedade do quadro social, a decisão
da retomada dispensaria, mais adiante, um trabalho de convencimento prévio. Isso ficou claro quando, após mais de uma
década de relativa inação, o governo federal, no período de mandato de Michel
Temer, criou o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, ocupado por Raul
Jungmann posteriormente extinto, com a ascensão de Bolsonaro. Naquele contexto
o Congresso transformou o projeto de criação do Sistema Único da Segurança
Pública, elaborado no âmbito daquele ministério, na Lei 13.675, de 11.06.2018. .
O “SUS” da
segurança pública ainda não saiu do papel. Razões disso estiveram, em parte, na
indisposição do governo Bolsonaro com a continuidade da institucionalização do
Estado, da qual a descontinuidade do ministério da Segurança é um emblema. Mas
é razoável supor que o prolongamento na inação para além daquele período, relacione-se
também à complexidade do federalismo brasileiro. Basta pensar no que precisa
ser a arquitetura política de um arranjo institucional como o SUSP, envolvendo
poderes subnacionais que manejam polícias militares. Requer fluência e
cooperação na relação do governo nacional não só com os governadores, mas com o
Senado, a casa legislativa de representação dos estados. Tudo o que não temos
na política brasileira atual. É em coisas assim, de imensa importância social,
que se precisa pensar antes de sustentar uma aposta na polarização política e
ideológica, com olho no plebiscito eleitoral pela Presidência da República. É
em coisas assim que se precisará pensar quando se tomar decisões pré-eleitorais
sobre alianças estaduais e o perfil político-partidário de candidaturas
democráticas unitárias ao Senado, no ano que vem. Na contramão do que quer a
extrema-direita, é de moderação e não de polarização que se vai precisar no
Senado, depois de 2026.
No atual momento
em que a pauta da segurança pública se impõe num cenário sombrio, já ajudará
muito se o atual governo federal, no plano das decisões
político-administrativas internas ao Poder Executivo, não pensar em reinventar
a roda e sim em remover idiossincrasias políticas para conectar elos perdidos. Seria
uma evidência de saudável opção por uma atitude pacificadora como pauta nacional
agregadora. Recusa de flerte (quando nada nessa área perigosa onde a letalidade
é regra) com a polarização como estratégia e programa. Assim poderá usar a
palavra paz com mais credibilidade que a parte da oposição que seguir na
maionese do êxito momentâneo do extremismo de Claudio Castro.
Se Lula quiser
seguir esse caminho (por dever de presidente preocupado com a segurança dos
governados e/ou por tino de candidato atento à oscilação de números que vinham
sendo animadores), vai precisar alterar o posicionamento ou até a escalação do
seu time de auxiliares em algum ponto do circuito entre os palácios do Planalto
e o da Justiça, onde Lewandowski se abriga. Gleisi, Rui Costa e, agora, Boulos
não são parceiros talhados para uma empreitada pacificadora, se for para valer.
Ou Lula desloca mais alguém de outra parte da Esplanada para acudir o titular
da Justiça nessa missão, ou escala ali alguém capaz de refratar os sabidos espíritos
de luta da trinca que despacha no palácio principal.
*Cientista
político e professor da UFBa

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