O Globo
Uma democracia saudável precisa de esquerda,
direita e centro bem constituídos
Há um debate entre os cientistas sociais
sobre a origem dos problemas políticos contemporâneos — se são fruto da
emergência de uma nova direita que tensiona os marcos das democracias liberais
ou de uma polarização mais ampla de todo o sistema político, que reorganiza
tanto a esquerda quanto a direita, num mecanismo de codeterminação entre uma e
outra. Em outras palavras, há um debate em curso sobre se essa nova direita
radical emergiu de dinâmicas próprias ou de uma reorganização das dinâmicas
entre esquerda e direita.
Na semana passada, comentei um estudo que a More in Common lançou no Brasil, aqui no GLOBO, mostrando que a população do país está segmentada em seis grupos coerentes em ideologia e valores. Nos polos, dois segmentos pequenos (cerca de 5% da população) ideologicamente coerentes e mobilizados, os Progressistas Militantes, à esquerda, e os Patriotas Indignados, à direita. Esses dois segmentos pequenos são respaldados, cada um deles, por um segmento maior, um pouco menos coerente e engajado, a Esquerda Tradicional (14%), de um lado, e os Conservadores Tradicionais (21%), do outro. Entre eles, dois segmentos grandes, muito desmobilizados e pouco afetados pelas posições ideológicas polarizadas, os Desengajados e os Cautelosos. Juntos, esses segmentos compõem a maioria (54%) da população.
Os segmentos foram identificados a partir da
adesão a um conjunto amplo de afirmações que expressam posições mobilizadas
tanto pela esquerda quanto pela direita no debate público. A metodologia
permite identificar grupos formados por padrões de resposta semelhantes,
revelando segmentos de crenças e valores que estruturam o debate público.
Essa forma de olhar para o Brasil por meio
dos segmentos permite entender como as dinâmicas de codeterminação entre
esquerda e direita criaram condições para a radicalização da direita. Explicar
o mecanismo como polarização não significa dizer que esquerda e direita sejam
igualmente “extremistas”, mas apenas que as posições dos polos se constituem
uma em função da outra, gerando efeitos sistêmicos. Isso é chamado de
“polarização assimétrica”.
Quem observa o discurso político da direita
nota rapidamente que ele se estrutura sobre a alegação de que as instituições
de reprodução de valores — escolas, universidades, meios de comunicação e
culturais — foram tomadas por uma elite progressista que faz uso delas para
promover sua ideologia, excluindo perspectivas conservadoras.
De fato, em muitas dessas instituições, o
etos progressista é dominante — o que não significa uma conspiração organizada,
mas uma orientação cultural compartilhada que molda práticas, linguagens e
prioridades simbólicas.
Esse modo discursivo que opõe elites
degeneradas progressistas a um povo puro conservador é populista. Sem entrar
muito nos debates acadêmicos, podemos dizer que populismo é um modo de fazer
política em que lideranças personalistas dizem defender a vontade do povo puro
contra elites corrompidas.
O Brasil é muito populista. Todos os
segmentos sobre os quais falamos anteriormente são populistas em larga medida,
mas os segmentos de direita são mais populistas culturais (aderem a discursos
que opõem o povo às elites culturais). Esse populismo cultural é exagerado,
distorcido e muitas vezes conspiracionista, mas ele se apoia em certos traços
reais do progressismo que podemos medir.
Em primeiro lugar, o segmento que tem
convicções progressistas é muito insulado socialmente. Quarenta por cento têm
ensino superior, quase o triplo da média do Brasil. Também têm renda muito
superior à dos demais brasileiros: 37% ganham mais que R$ 10 mil.
Quando olhamos para opiniões sobre temas de
educação e direitos humanos e para a confiança em instituições como igrejas ou
Forças Armadas, suas posições ficam muito distantes dos demais segmentos que
compõem o Brasil. Não vemos essa mesma distância entre os Patriotas e os outros
segmentos.
Isso sugere que os Progressistas estão
socialmente isolados, com certas posições em temas de valores difíceis de
difundir para o resto da sociedade. Isso é muito ruim para o Brasil, porque
permite a seus adversários caracterizá-los como uma elite cultural que conspira
contra o povo. A força desse discurso populista cultural é orientada contra as
instituições, produzindo instabilidade política e afetos negativos fortes que
podem se transformar em violência política.
Quando reconhecemos que os polos se
constituem mutuamente — e que cada ator político contribui, ainda que involuntariamente,
para a retroalimentação desse antagonismo —, abrimos espaço a uma reflexão
coletiva que pode apontar para novas formas de convivência democrática.
Superar a polarização não significa apagar as
diferenças. Uma democracia saudável precisa de esquerda, direita e centro bem
constituídos. Mas precisamos que os antagonismos entre essas posições não se
convertam em hostilidade moral ou desconfiança institucional que coloquem em
perigo a coesão democrática.
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