sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Os progressistas e o populismo, por Pablo Ortellado

O Globo

Uma democracia saudável precisa de esquerda, direita e centro bem constituídos

Há um debate entre os cientistas sociais sobre a origem dos problemas políticos contemporâneos — se são fruto da emergência de uma nova direita que tensiona os marcos das democracias liberais ou de uma polarização mais ampla de todo o sistema político, que reorganiza tanto a esquerda quanto a direita, num mecanismo de codeterminação entre uma e outra. Em outras palavras, há um debate em curso sobre se essa nova direita radical emergiu de dinâmicas próprias ou de uma reorganização das dinâmicas entre esquerda e direita.

Na semana passada, comentei um estudo que a More in Common lançou no Brasil, aqui no GLOBO, mostrando que a população do país está segmentada em seis grupos coerentes em ideologia e valores. Nos polos, dois segmentos pequenos (cerca de 5% da população) ideologicamente coerentes e mobilizados, os Progressistas Militantes, à esquerda, e os Patriotas Indignados, à direita. Esses dois segmentos pequenos são respaldados, cada um deles, por um segmento maior, um pouco menos coerente e engajado, a Esquerda Tradicional (14%), de um lado, e os Conservadores Tradicionais (21%), do outro. Entre eles, dois segmentos grandes, muito desmobilizados e pouco afetados pelas posições ideológicas polarizadas, os Desengajados e os Cautelosos. Juntos, esses segmentos compõem a maioria (54%) da população.

Os segmentos foram identificados a partir da adesão a um conjunto amplo de afirmações que expressam posições mobilizadas tanto pela esquerda quanto pela direita no debate público. A metodologia permite identificar grupos formados por padrões de resposta semelhantes, revelando segmentos de crenças e valores que estruturam o debate público.

Essa forma de olhar para o Brasil por meio dos segmentos permite entender como as dinâmicas de codeterminação entre esquerda e direita criaram condições para a radicalização da direita. Explicar o mecanismo como polarização não significa dizer que esquerda e direita sejam igualmente “extremistas”, mas apenas que as posições dos polos se constituem uma em função da outra, gerando efeitos sistêmicos. Isso é chamado de “polarização assimétrica”.

Quem observa o discurso político da direita nota rapidamente que ele se estrutura sobre a alegação de que as instituições de reprodução de valores — escolas, universidades, meios de comunicação e culturais — foram tomadas por uma elite progressista que faz uso delas para promover sua ideologia, excluindo perspectivas conservadoras.

De fato, em muitas dessas instituições, o etos progressista é dominante — o que não significa uma conspiração organizada, mas uma orientação cultural compartilhada que molda práticas, linguagens e prioridades simbólicas.

Esse modo discursivo que opõe elites degeneradas progressistas a um povo puro conservador é populista. Sem entrar muito nos debates acadêmicos, podemos dizer que populismo é um modo de fazer política em que lideranças personalistas dizem defender a vontade do povo puro contra elites corrompidas.

O Brasil é muito populista. Todos os segmentos sobre os quais falamos anteriormente são populistas em larga medida, mas os segmentos de direita são mais populistas culturais (aderem a discursos que opõem o povo às elites culturais). Esse populismo cultural é exagerado, distorcido e muitas vezes conspiracionista, mas ele se apoia em certos traços reais do progressismo que podemos medir.

Em primeiro lugar, o segmento que tem convicções progressistas é muito insulado socialmente. Quarenta por cento têm ensino superior, quase o triplo da média do Brasil. Também têm renda muito superior à dos demais brasileiros: 37% ganham mais que R$ 10 mil.

Quando olhamos para opiniões sobre temas de educação e direitos humanos e para a confiança em instituições como igrejas ou Forças Armadas, suas posições ficam muito distantes dos demais segmentos que compõem o Brasil. Não vemos essa mesma distância entre os Patriotas e os outros segmentos.

Isso sugere que os Progressistas estão socialmente isolados, com certas posições em temas de valores difíceis de difundir para o resto da sociedade. Isso é muito ruim para o Brasil, porque permite a seus adversários caracterizá-los como uma elite cultural que conspira contra o povo. A força desse discurso populista cultural é orientada contra as instituições, produzindo instabilidade política e afetos negativos fortes que podem se transformar em violência política.

Quando reconhecemos que os polos se constituem mutuamente — e que cada ator político contribui, ainda que involuntariamente, para a retroalimentação desse antagonismo —, abrimos espaço a uma reflexão coletiva que pode apontar para novas formas de convivência democrática.

Superar a polarização não significa apagar as diferenças. Uma democracia saudável precisa de esquerda, direita e centro bem constituídos. Mas precisamos que os antagonismos entre essas posições não se convertam em hostilidade moral ou desconfiança institucional que coloquem em perigo a coesão democrática.

 

Nenhum comentário: