Valor Econômico
Diferentemente de seu significado original,
criado por Schumpeter, o termo designa hoje no Brasil ganhar dominação, poder e
riqueza
Volta e meia circulam aqui palavras,
geralmente traduções do inglês, para nós aparentemente novas, mas que já eram
antigas e usuais, com variantes de significado ao longo do tempo. De certo
modo, palavras têm “biografia”. Se quisermos colocar a questão numa perspectiva
mais abrangente que, no caso, é a policial, elas têm até “folha corrida”.
Quando fui pesquisador visitante da Universidade de Cambridge, na Inglaterra e, depois, professor catedrático, pagava minhas contas numa agência de famoso banco bem no centro da cidade. Uma placa indicava que ali tivera casa, na qual instalara o primeiro banco da localidade, John Murdock (1755-1816), que fora membro do Parlamento e 13 vezes prefeito da cidade. Tinha um lema, que a placa consagra: “O que vocês chamam corrupção, eu chamo influência”. Explicava seu criativo modo de criar riqueza e poder.
Está sepultado, santamente, numa pequena
igreja próxima da casa em que vivera e em que triunfara como empreendedor.
Nela, hoje, há um restaurante italiano.
Dessa cultura, uma palavra que teima em se
infiltrar em nosso vocabulário é “empreendedorismo”. Como se fosse um conceito
socialmente inovador. Em inglês tem sentido mais especificamente econômico,
relativo a ganho e lucro, do que aqui.
O sentido da palavra agora vulgarizada vem de
Joseph Schumpeter (1883-1950), economista tcheco, que foi ministro da economia
da Áustria. Acabou emigrando para os EUA, tornou-se cidadão americano e lá
morreu.
Bem examinada a coisa, não se trata de mera
inovação vocabular, mais uma palavra dentre tantas palavras estrangeiras que se
incorporam a uma língua que já não é, propriamente, a nossa velha língua
portuguesa com sotaque nheengatu.
Durante o período bolsonarista de nossa
decadência política, “fake news” foi designação “chique”, porque em inglês,
para uma prática aqui antiga nem um pouco chique, a mentira como instrumento da
esperteza e dos espertalhões. Não apenas para juntar riqueza, mas também para
juntar poder, um instrumento novo de nossa corrupção antiga.
Empreendedorismo, tudo sugere, é vulgarização
ampliada da concepção do mesmo Schumpeter, a de empresário inovador, aquele que
em busca do lucro toma decisões econômicas de risco, inova porque antecipa-se
nas práticas de obtenção do lucro que o diferenciam dos concorrentes.
Schumpeter deu à centralidade de sua
concepção de inovação o sentido de “destruição criativa”. Ela impulsiona o
progresso industrial e destrói as práticas econômicas obsoletas. Promove o
desaparecimento de indústrias antiquadas e o surgimento de novas.
De certo modo, a concepção de economia de
Schumpeter e a cultura do empreendedorismo já não dizem respeito, propriamente,
ao que o filósofo Karl Marx (1818-1883) e seu parceiro de obra, o empresário do
ramo têxtil Friedrich Engels (1820-1895), definiram como modo capitalista de
produção e reprodução do capital, uma teia de relações sociais e de consciência
social, as relações sociais de classe.
Com Schumpeter, dizem respeito a crescimento
econômico, a quantidades, a ganhar com a inovação econômica para ganhar
primeiro e, assim, ganhar mais. Já não dizem respeito a desenvolvimento
econômico com um modo determinado e cambiante de desenvolvimento social. O
lucro extraordinário da inovação já não resulta de relações sociais de
superação de contradições da reprodução do capital. Mas da solidão do
empreendedor criativo.
A transformação dessa mudança em cultura do
meramente lucrar, em mediação da mentalidade pós-moderna, espalha-se
rapidamente e promove a transformação redutiva e funcional das mentalidades. Já
não se trata apenas do ganhar como lucro, mas do ganhar no amplo sentido de
ganhar dominação, poder e riqueza, de uma economia sem socialidade.
Na “Ética protestante e o espírito do
capitalismo”, de Max Weber, o enriquecimento era indício do favorecimento de
Deus ao cumpridor de uma ética de moderação, do consumo ao sexo. Deus entrava
indiretamente num modo de vida que favorecia o enriquecimento da pessoa por ele
beneficiado.
As igrejas pentecostais, nos EUA e depois em
outros países, como o Brasil, através da teologia da prosperidade reinventaram
Deus e o tornaram sócio do empreendimento. O crente investe o que tem na compra
da benevolência de Deus e cada templo é, de certo modo, um balcão de negócios.
Diferentemente da tese schumpeteriana, o
ganho não é aí produto de um risco criativo e calculado. É investimento e
compra. É expressão da coisificação da pessoa e de uma modalidade de alienação
que a liberta dos valores da tradição, como a do pensamento crítico, para
torná-la escrava de uma vida que é o cativeiro de um modo materialista de
empreender.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Entre outros livros, é autor de “No
limiar da noite” (Ateliê Editorial, Cotia, 2021)
Nenhum comentário:
Postar um comentário