sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Transições entre empregadores e trabalhadores autônomos, por João Saboia e outros

Valor Econômico

Para avançar, as políticas deveriam combinar incentivos à formalização, apoio ao crescimento dos pequenos negócios e proteção social adaptada às novas formas de trabalho

Hoje em dia tem sido comum ouvir argumentos sobre a preferência dos trabalhadores por autonomia, liberdade de horário, inexistência de patrão etc. Isto seria razão inclusive para uma certa má vontade com o trabalho celetista e a posse da carteira assinada. Trata-se de uma questão polêmica que depende muito do perfil do trabalhador e das condições do mercado de trabalho. Não pretendemos entrar hoje nessa discussão. A ideia é analisar a situação de quem já está trabalhando como autônomo ou empregador, grupo que representava cerca de 30% dos ocupados em 2024.

Em artigo publicado no Valor em 26/06/2025 analisamos o perfil dos trabalhadores por conta própria (TCPs), diferenciando aqueles que possuem CNPJ dos demais, a partir dos dados da PNAD Contínua do IBGE. Mostramos o forte crescimento da participação daqueles com CNPJ e destacamos que o aumento no número de TCPs no período 2019-2024 se deveu exclusivamente aos que se formalizaram. Essa formalização dos TCPs está fortemente ligada ao aumento do número de microempreendedores individuais (MEI) no período. Apesar disso, o percentual de TCPs com CNPJ não passava de 25% do total em 2024.

No caso dos empregadores a situação é bem distinta. A regra geral é ter o negócio com CNPJ - 81% são formais. Houve aumento de 2% no número de empregadores com CNPJ no período, sendo o crescimento mais elevado para os informais (5%). A razão para o crescimento menor dos empregadores formais não está muito clara, mas provavelmente deve estar associada à pandemia da covid-19 que resultou no fechamento de muitas empresas.

No artigo anterior mostramos os grandes desníveis existentes entre os TCPs com e sem CNPJ, destacando os dados bem mais favoráveis dos primeiros. Aqui, confirmamos resultados semelhantes entre os empregadores. Aqueles com CNPJ são mais brancos (65% x 44%), mais escolarizados (13,6 x 10,4 anos de estudo), trabalham mais horas semanais (47 x 44) e possuem rendimentos mensais muito superiores (R$ 9.300 x R$ 4.700). Já na questão de gênero, 78% dos empregadores informais são homens, enquanto entre os formais, cai para 68%. Portanto, há ampla predominância de homens nos dois casos.

A comparação entre os quatro grupos de empregadores e TCPs formais e informais mostra alguns resultados bem interessantes. Os dois grupos formais possuem cerca de três anos de escolaridade a mais do que os dois grupos informais. Os percentuais de ocupados em atividades de nível superior e de nível médio também são bem mais elevados nos dois grupos formais, especialmente entre os TCPs, onde cerca da terça parte possui este tipo de ocupação. Um resultado até certo ponto inesperado é a descoberta de que os TCPs com CNPJ possuem rendimentos médios equivalentes aos dos empregadores sem CNPJ.

Os dados mostram também que parece haver uma forte interrelação entre os empregadores e os TCPs. A maior diferença entre eles parece ser a existência ou não da formalização via CNPJ. Até que ponto um TCP se torna um empregador e vice-versa? Para aprofundar as relações entre esses grupos calculamos as transições entre os quatro grupos analisados, assim como para outros grupos do mercado de trabalho. Exploramos os dados de 2024 calculando o percentual médio das transições dos empregadores e TCPs com e sem CNPJ entre os trimestres vizinhos do ano.

Em geral, os dois grupos aqui analisados tendem a manter seu status entre dois trimestres consecutivos. Entre os TCPs sem CNPJ, 65% permanecem na mesma posição, mas 14% saem da força de trabalho no período seguinte. Já entre os TCPs com CNPJ, 57% continuam na mesma situação, enquanto um percentual significativo de 22% se torna informal. No caso dos empregadores com CNPJ, 70% conseguem manter essa posição, sendo o grupo mais estável, havendo 12% que se tornam trabalhadores por conta própria com CNPJ. Finalmente, entre os empregadores sem CNPJ observa-se uma maior mobilidade. Apenas um terço continua na mesma posição no trimestre seguinte, representando uma condição mais transitória, enquanto 31% migram para o trabalho por conta própria sem CNPJ. Há ainda uma parcela menor de 14% que se tornam empregadores com CNPJ. A tabela mostra outras transições possíveis com menores probabilidades de ocorrência.

A situação econômica induz parcela dos TCPs e empregadores a modificarem seu status a cada trimestre, com uma dinâmica até certo ponto surpreendente. As transições ocorrem sobretudo entre esses grupos, sendo a mobilidade para o emprego formal e outras categorias muito baixa. Numa conjuntura desfavorável um empregador com CNPJ pode se transformar em empregador sem CNPJ ou dispensar seus empregados e se transformar num TCP com, ou até mesmo, sem CNPJ. Analogamente, numa conjuntura favorável, o movimento inverso pode se intensificar: um TCP sem CNPJ pode se tornar um TCP com CNPJ, ou um TCP com CNPJ pode se transformar em empregador com CNPJ. Ou ainda, um empregador sem CNPJ se tornar um empregador com CNPJ.

Esses padrões refletem trajetórias de ascensão e descida na escala de formalização e estabilidade. No caso dos trabalhadores por conta própria, nota-se que os informais tendem a permanecer mais tempo nessa condição do que os formais - sugerindo barreiras à mobilidade ascendente. Já entre os empregadores ocorre o inverso: os formalizados apresentam maior estabilidade que os informais. Esse contraste evidencia que os mecanismos que sustentam a permanência ou a transição diferem entre trabalhadores por conta própria e empregadores, reforçando a importância de políticas diferenciadas para cada grupo. Para avançar, as políticas deveriam combinar incentivos à formalização, apoio ao crescimento dos pequenos negócios e proteção social adaptada às novas formas de trabalho. O desafio central é transformar a formalização em base efetiva para renda estável, produtividade e inclusão econômica sustentável.

*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ (IE/UFRJ).
Valéria Pero é professora associada do IE/UFRJ.
Adriana Fontes é pesquisadora visitante do IE/UFRJ.

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