Política Democrática online (FAP)
Na raiz de toda estratégia política, pelo menos na era moderna (ou seja, no contexto de um mundo substancialmente unificado), deve estar presente o nexo nacional-internacional. Isso significa que cada força política tem a tarefa preliminar de elaborar uma “leitura” da ordem mundial, de “traduzi-la” na linguagem própria da sua nação e contribuir ativamente para a formação de uma ordem internacional de qualidade superior.
Se nos desviarmos,
mesmo que ligeiramente, dessa regra, ou mesmo se esquecermos dela, caímos no
erro do “nacionalismo” (uma política que se funda unicamente na especificidade
de uma situação nacional) ou, por outro lado, no equívoco de um cosmopolitismo
abstrato, que Antonio Labriola certa vez definiu apropriadamente como
“amorfismo”. Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci escreveu essas palavras, que
ainda hoje merecem reflexão cuidadosa:
“O desenvolvimento
é em direção ao internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’, e é a
partir desse ponto de partida que se deve começar. Mas a perspectiva é
internacional e não pode ser outra coisa senão isso.”
Ele defendeu, portanto, a necessidade de conceber a política como “hegemonia”, como uma “combinação” dos dois aspectos, ou seja, desenvolvida por um sujeito (o partido político) no nível intelectual (o intelectual “orgânico” ou, como se dirá mais tarde, “coletivo”). Togliatti reiterou a mesma compreensão na sua intervenção junto à Comissão Cultural do PCI, em 3 de abril de 1952, quando afirmou que uma “cultura socialista é assim em seu conteúdo, mas nacional em sua forma”.
Para Gramsci,
assim como para Togliatti, a elaboração dessa conexão se deu de maneira mais
clara, embora nenhum pouco simples, pela existência de um campo mundial, o
soviético, que havia se “separado” do capitalismo e que, desde o início,
representava uma referência obrigatória para a política comunista. Mas como as
coisas se põem agora para nós? Como podemos determinar essa relação hoje, após
o colapso do comunismo soviético e a partir de uma perspectiva democrática? É
evidente que a resposta a essa pergunta se apresenta como o passo fundamental
para a reconstrução do pensamento de esquerda na Itália e no âmbito do
socialismo europeu.
Colocar “o próprio
tempo” no interior do seu pensamento, significa para qualquer um (mesmo um
partido político) “ser, sem dúvida, filho do seu tempo”, segundo o esplêndido
aforismo empregado por Hegel no Prefácio de 1820 aos Princípios de Filosofia do
Direito; é a tarefa teórica mais importante para uma esquerda que quer se
candidatar a governar uma grande nação. Vivemos num mundo cada vez mais
unificado economicamente, dominado pela lei da assim chamada “globalização”,
mas dilacerado por feridas profundas que impedem uma verdadeira unificação do
gênero humano – um antigo sonho do Cristianismo, do Iluminismo e do Comunismo –
e que, portanto, gera guerra e destruição.
Por um lado, a
exploração (ou seja, a separação entre produção e consumo), que os economistas
clássicos, e mesmo Marx, puderam observar nos confins da avançada Inglaterra
dos séculos XVIII e XIX, espalhou-se e dividiu-se por diferentes regiões
geopolíticas, gerando nova fratura entre o Norte e o Sul do mundo, e que chega
às nossas cidades por meio dos fenômenos migratórios. Por outro lado, à unidade
econômica (da produção, comércio e das finanças) corresponde uma fragmentação
das formas políticas – dos Estados Nacionais, como na Europa, ou de outras
formas, talvez menos obsoletas – estruturalmente incapazes de regular e
governar a dinâmica dos processos econômicos globais. A política, em suma,
corre na contramão do caminho da evolução econômica. A modernidade, tendo-se
desenvolvido na esfera produtiva, ainda não encontrou a morfologia política
correspondente ao seu nível de progresso, regredindo periodicamente à lógica
das barreiras alfandegárias e às taxas recíprocas, tornando assim mais agudo e
dramático seu próprio limite histórico.
Dois mitos
a serem superados
As guerras que
assolam o planeta hoje (um total de 56, envolvendo o território de pelo menos
92 países) são filhas dessa situação, onde, para citar Marx, as “relações de
produção” (a lógica da exploração global e a divisão dos Estados) contradizem
flagrantemente o desenvolvimento das “forças produtivas”. Essa condição
“objetiva”, no entanto, é acompanhada por duas ilusões “subjetivas”,
verdadeiros mitos que, nas últimas décadas, contaminaram a ideologia da
esquerda europeia (e italiana), levando-a a escolhas, como a do rearmamento
generalizado, destinadas a gerar sucessivas e mais graves ameaças à ordem
mundial.
O primeiro mito é
o de um desenvolvimento “unipolar” dos processos globais, envolto em vagas
aspirações democráticas e, sobretudo, liberais. Após a queda do Muro de Berlim
e mais ainda com as guerras desencadeadas no Afeganistão e no Iraque, os
Estados Unidos e seus aliados sucumbiram à ilusão de que seu modelo poderia ser
generalizado sem resistência, ou melhor, vencendo a disputa internacional com base
no poder econômico e militar. Para se ter uma ideia mais clara desse projeto
global basta observar a situação atual no Oriente Médio, uma tentativa de
remodelar o equilíbrio geopolítico de poder em toda a região. Com a Rússia
empenhada na guerra na Ucrânia, a China focada no desenvolvimento econômico,
com a mudança de regime na Síria e com o ataque militar ao Irã, o objetivo é o
de impor uma medida precisa contra toda a resistência e com o sacrifício final
do povo palestino.
Projetada em
escala global, esta é a mecânica de uma visão “unipolar” das relações
internacionais: desconcentrar e enfraquecer o inimigo, destruindo povos. A
esquerda deve se opor a essa lógica, elaborar sua visão própria não só de
“multilateralismo”, mas também de “policentrismo”, ou seja, a ideia de que o
futuro do mundo não reside no “choque de civilizações”, mas no processo de
crescimento e diálogo entre diferentes “civilizações”, cada uma capaz de dar
sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade.
O segundo “mito” a
que me referi diz respeito à própria ideia de “Ocidente”, reiterada hoje até
mesmo nos currículos escolares e tornada um verdadeiro escudo ideológico para
as mais aventureiras iniciativas políticas e militares. De uma expressão geográfica
inofensiva, o conceito de “Ocidente” se tornou (especialmente após a eclosão da
Guerra Russo-Ucraniana) terreno de identificação e contraposição frente a um
mundo considerado diferente e genericamente definido como “Oriente”.
A história desta
palavra – “Ocidente” – exigiria uma longa discussão, parte da qual já foi
realizada por estudiosos competentes. Ela tem uma genealogia complexa, que
remonta à cultura inglesa do final do século XIX (Benjamin Kidd) e à grande
obra de Oswald Spengler sobre o Declínio do Ocidente, até aportar no curso
instituído pela Universidade de Columbia sobre Civilização Ocidental, em 1919.
É uma história, aliás, que encontra paralelos precisos em outras partes do
mundo, no Japão (Fukuzawa Yukichi) e, especialmente, na cultura islâmica (a
Revolução Iraniana). Mas é certo que a palavra “Ocidente”, pelo menos desde a
primeira Guerra do Golfo (1990-1991), mudou de significado, a ponto de se
tornar a bandeira de um desafio global e o motivo de um fechamento identitário
em termos políticos, culturais e religiosos. Ela representa hoje o instrumento
ideológico mais perigoso de uma visão “unipolar” das relações internacionais,
atrelada à tese da inevitabilidade da guerra.
Acredito que a
cultura de esquerda deve recomeçar a partir dessas questões. Recomeçar a partir
do problema da paz e do “policentrismo”, temas inscritos de maneira profunda na
tradição comunista, socialista e católico-democrática. Olhando para a Europa, é
claro, mas para uma Europa a ser reconstruída e refundada em seus princípios
fundamentais, como uma “grande potência” de diálogo entre os povos e suas
diferentes perspectivas de civilização.
*Marcello Mustè é professor de filosofia na Universidade Sapienza de Roma. É membro do Conselho Científico da Fundação Gramsci de Roma e autor, dentre outros, de Marxismo e filosofia dela práxis. Da Labriola a Gramsci (Viella, 2018) e Rivoluzioni passive – Il mondo tra le due guerre nei Quaderni del carcere di Gramsci (Viella, 2022).
*Artigo
orginalmente publicado na revista eletrônica italiana Strisciarossa em 22 de
julho de 2025; https://www.strisciarossa.it/il-mito-di-un-mondo-unipolare-genera-conflitti-la-sinistra-deve-elaborare-una-propria-visione-policentrica-del-futuro/.
A tradução é de Alberto Aggio.
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