domingo, 17 de agosto de 2025

A esquerda deve elaborar sua própria visão policêntrica do futuro, por Marcello Mustè*

Política Democrática online (FAP)

Na raiz de toda estratégia política, pelo menos na era moderna (ou seja, no contexto de um mundo substancialmente unificado), deve estar presente o nexo nacional-internacional. Isso significa que cada força política tem a tarefa preliminar de elaborar uma “leitura” da ordem mundial, de “traduzi-la” na linguagem própria da sua nação e contribuir ativamente para a formação de uma ordem internacional de qualidade superior.

Se nos desviarmos, mesmo que ligeiramente, dessa regra, ou mesmo se esquecermos dela, caímos no erro do “nacionalismo” (uma política que se funda unicamente na especificidade de uma situação nacional) ou, por outro lado, no equívoco de um cosmopolitismo abstrato, que Antonio Labriola certa vez definiu apropriadamente como “amorfismo”. Em seus Cadernos do Cárcere, Gramsci escreveu essas palavras, que ainda hoje merecem reflexão cuidadosa:

“O desenvolvimento é em direção ao internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’, e é a partir desse ponto de partida que se deve começar. Mas a perspectiva é internacional e não pode ser outra coisa senão isso.”

Ele defendeu, portanto, a necessidade de conceber a política como “hegemonia”, como uma “combinação” dos dois aspectos, ou seja, desenvolvida por um sujeito (o partido político) no nível intelectual (o intelectual “orgânico” ou, como se dirá mais tarde, “coletivo”). Togliatti reiterou a mesma compreensão na sua intervenção junto à Comissão Cultural do PCI, em 3 de abril de 1952, quando afirmou que uma “cultura socialista é assim em seu conteúdo, mas nacional em sua forma”.

Para Gramsci, assim como para Togliatti, a elaboração dessa conexão se deu de maneira mais clara, embora nenhum pouco simples, pela existência de um campo mundial, o soviético, que havia se “separado” do capitalismo e que, desde o início, representava uma referência obrigatória para a política comunista. Mas como as coisas se põem agora para nós? Como podemos determinar essa relação hoje, após o colapso do comunismo soviético e a partir de uma perspectiva democrática? É evidente que a resposta a essa pergunta se apresenta como o passo fundamental para a reconstrução do pensamento de esquerda na Itália e no âmbito do socialismo europeu.

Colocar “o próprio tempo” no interior do seu pensamento, significa para qualquer um (mesmo um partido político) “ser, sem dúvida, filho do seu tempo”, segundo o esplêndido aforismo empregado por Hegel no Prefácio de 1820 aos Princípios de Filosofia do Direito; é a tarefa teórica mais importante para uma esquerda que quer se candidatar a governar uma grande nação. Vivemos num mundo cada vez mais unificado economicamente, dominado pela lei da assim chamada “globalização”, mas dilacerado por feridas profundas que impedem uma verdadeira unificação do gênero humano – um antigo sonho do Cristianismo, do Iluminismo e do Comunismo – e que, portanto, gera guerra e destruição.

Por um lado, a exploração (ou seja, a separação entre produção e consumo), que os economistas clássicos, e mesmo Marx, puderam observar nos confins da avançada Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, espalhou-se e dividiu-se por diferentes regiões geopolíticas, gerando nova fratura entre o Norte e o Sul do mundo, e que chega às nossas cidades por meio dos fenômenos migratórios. Por outro lado, à unidade econômica (da produção, comércio e das finanças) corresponde uma fragmentação das formas políticas – dos Estados Nacionais, como na Europa, ou de outras formas, talvez menos obsoletas – estruturalmente incapazes de regular e governar a dinâmica dos processos econômicos globais. A política, em suma, corre na contramão do caminho da evolução econômica. A modernidade, tendo-se desenvolvido na esfera produtiva, ainda não encontrou a morfologia política correspondente ao seu nível de progresso, regredindo periodicamente à lógica das barreiras alfandegárias e às taxas recíprocas, tornando assim mais agudo e dramático seu próprio limite histórico.

Dois mitos a serem superados

As guerras que assolam o planeta hoje (um total de 56, envolvendo o território de pelo menos 92 países) são filhas dessa situação, onde, para citar Marx, as “relações de produção” (a lógica da exploração global e a divisão dos Estados) contradizem flagrantemente o desenvolvimento das “forças produtivas”. Essa condição “objetiva”, no entanto, é acompanhada por duas ilusões “subjetivas”, verdadeiros mitos que, nas últimas décadas, contaminaram a ideologia da esquerda europeia (e italiana), levando-a a escolhas, como a do rearmamento generalizado, destinadas a gerar sucessivas e mais graves ameaças à ordem mundial.

O primeiro mito é o de um desenvolvimento “unipolar” dos processos globais, envolto em vagas aspirações democráticas e, sobretudo, liberais. Após a queda do Muro de Berlim e mais ainda com as guerras desencadeadas no Afeganistão e no Iraque, os Estados Unidos e seus aliados sucumbiram à ilusão de que seu modelo poderia ser generalizado sem resistência, ou melhor, vencendo a disputa internacional com base no poder econômico e militar. Para se ter uma ideia mais clara desse projeto global basta observar a situação atual no Oriente Médio, uma tentativa de remodelar o equilíbrio geopolítico de poder em toda a região. Com a Rússia empenhada na guerra na Ucrânia, a China focada no desenvolvimento econômico, com a mudança de regime na Síria e com o ataque militar ao Irã, o objetivo é o de impor uma medida precisa contra toda a resistência e com o sacrifício final do povo palestino.

Projetada em escala global, esta é a mecânica de uma visão “unipolar” das relações internacionais: desconcentrar e enfraquecer o inimigo, destruindo povos. A esquerda deve se opor a essa lógica, elaborar sua visão própria não só de “multilateralismo”, mas também de “policentrismo”, ou seja, a ideia de que o futuro do mundo não reside no “choque de civilizações”, mas no processo de crescimento e diálogo entre diferentes “civilizações”, cada uma capaz de dar sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade.

O segundo “mito” a que me referi diz respeito à própria ideia de “Ocidente”, reiterada hoje até mesmo nos currículos escolares e tornada um verdadeiro escudo ideológico para as mais aventureiras iniciativas políticas e militares. De uma expressão geográfica inofensiva, o conceito de “Ocidente” se tornou (especialmente após a eclosão da Guerra Russo-Ucraniana) terreno de identificação e contraposição frente a um mundo considerado diferente e genericamente definido como “Oriente”.

A história desta palavra – “Ocidente” – exigiria uma longa discussão, parte da qual já foi realizada por estudiosos competentes. Ela tem uma genealogia complexa, que remonta à cultura inglesa do final do século XIX (Benjamin Kidd) e à grande obra de Oswald Spengler sobre o Declínio do Ocidente, até aportar no curso instituído pela Universidade de Columbia sobre Civilização Ocidental, em 1919. É uma história, aliás, que encontra paralelos precisos em outras partes do mundo, no Japão (Fukuzawa Yukichi) e, especialmente, na cultura islâmica (a Revolução Iraniana). Mas é certo que a palavra “Ocidente”, pelo menos desde a primeira Guerra do Golfo (1990-1991), mudou de significado, a ponto de se tornar a bandeira de um desafio global e o motivo de um fechamento identitário em termos políticos, culturais e religiosos. Ela representa hoje o instrumento ideológico mais perigoso de uma visão “unipolar” das relações internacionais, atrelada à tese da inevitabilidade da guerra.

Acredito que a cultura de esquerda deve recomeçar a partir dessas questões. Recomeçar a partir do problema da paz e do “policentrismo”, temas inscritos de maneira profunda na tradição comunista, socialista e católico-democrática. Olhando para a Europa, é claro, mas para uma Europa a ser reconstruída e refundada em seus princípios fundamentais, como uma “grande potência” de diálogo entre os povos e suas diferentes perspectivas de civilização.

*Marcello Mustè é professor de filosofia na Universidade Sapienza de Roma. É membro do Conselho Científico da Fundação Gramsci de Roma e autor, dentre outros, de Marxismo e filosofia dela práxis. Da Labriola a Gramsci (Viella, 2018) e Rivoluzioni passive – Il mondo tra le due guerre nei Quaderni del carcere di Gramsci (Viella, 2022).

*Artigo orginalmente publicado na revista eletrônica italiana Strisciarossa em 22 de julho de 2025;  https://www.strisciarossa.it/il-mito-di-un-mondo-unipolare-genera-conflitti-la-sinistra-deve-elaborare-una-propria-visione-policentrica-del-futuro/. A tradução é de Alberto Aggio.

 

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