Folha de S. Paulo
A realidade paralela que existe nas redes
bolsonaristas equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos
Da triste arruaça no Congresso, permanece nas retinas a imagem de uma deputada tumultuária com um bebê de quatro meses no colo, sequestrando a cadeira do presidente da Câmara. Essa persistência ótica é o que Roland Barthes, a propósito da fotografia, chama de "punctum", um ponto de convergência do olhar que centraliza o sentido da imagem (em "Câmara Clara"). A parlamentar admitiu, depois, que pretendia usar a criança como escudo durante a balbúrdia.
Não mais funcionam adjetivos como
"chocante" para o grotesco do extremismo político nacional. Da
baderna na Câmara, poderia ficar como ponto de mirada o
esparadrapo na boca dos desordeiros. Seria, porém, mero clichê diante
do risco assumido pela parlamentar na mesa diretora. Por maior cuidado que se
possa dispensar a um recém-nascido, numa tropelia física, é alta a
probabilidade de um impacto aleatório em ossos (a moleira, a sutura)
fragilíssimos. Em princípio, mãe nenhuma aceitaria o risco.
A deputada aceitou. Não era caso de aleitar
filho no trabalho, o
Congresso estava em recesso. Queria usá-lo como escudo, ela própria
afirmou, o que suscita interrogações sobre esse comportamento puerperal em grau
de anomalia coextensiva a uma turba violenta. A motivação é complexa: ponto
cego numa explicação sócio-histórica para esse tipo de bizarrice, segundo a
qual não se trataria de déficit moral ou cognitivo dos agentes, mas da precária
interlocução política no espaço público. É uma hipótese que aposta no poder
agregativo da ideologia.
A lógica do diálogo público não dá conta,
entretanto, da anômala surdez seletiva no predomínio mental da informação sobre
a experiência prática. Confinados a suas golpistas bolhas informativas, os
deputados amotinados eram surdos à liturgia parlamentar e à percepção de que
perpetravam o que não se pode em uma República: a desmoralização do Congresso.
A realidade paralela nas redes bolsonaristas
equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos. Uma infantilização
adulta que faz lembrar a revolta sem causa da adolescência. Em vez de
consciência de si, delírio performativo, com um fio condutor: o golpismo que,
sem ousar dizer o seu nome, dá lugar de fala à doença. Mas não se trata de
doença mental entendida em termos individuais como delírio e sofrimento
passíveis de uma remissão psiquiátrica. Não há cura possível para uma afecção
de natureza grupal alimentada por ódio e mentira. O único caminho para uma
resposta cívica é a imprescindível punição institucional.
Em modo permanente, esse ativismo delirante
suprime sentimentos. "Ghosting" é designação corrente, não apenas na
internet, para o brusco desaparecimento de um contato. Mas, a fragmentação
afetiva, provocada pelas redes e pelo socionarcisismo emergente, é simultânea
ao ghosting do sentimento de nação, da convivência democrática e, pelo visto,
da maternagem. Um ponto crítico de mirada para o aleitamento do caos.
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