domingo, 17 de agosto de 2025

O aleitamento do caos, por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

A realidade paralela que existe nas redes bolsonaristas equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos

Da triste arruaça no Congresso, permanece nas retinas a imagem de uma deputada tumultuária com um bebê de quatro meses no colo, sequestrando a cadeira do presidente da Câmara. Essa persistência ótica é o que Roland Barthes, a propósito da fotografia, chama de "punctum", um ponto de convergência do olhar que centraliza o sentido da imagem (em "Câmara Clara"). A parlamentar admitiu, depois, que pretendia usar a criança como escudo durante a balbúrdia.

Não mais funcionam adjetivos como "chocante" para o grotesco do extremismo político nacional. Da baderna na Câmara, poderia ficar como ponto de mirada o esparadrapo na boca dos desordeiros. Seria, porém, mero clichê diante do risco assumido pela parlamentar na mesa diretora. Por maior cuidado que se possa dispensar a um recém-nascido, numa tropelia física, é alta a probabilidade de um impacto aleatório em ossos (a moleira, a sutura) fragilíssimos. Em princípio, mãe nenhuma aceitaria o risco.

A deputada aceitou. Não era caso de aleitar filho no trabalho, o Congresso estava em recesso. Queria usá-lo como escudo, ela própria afirmou, o que suscita interrogações sobre esse comportamento puerperal em grau de anomalia coextensiva a uma turba violenta. A motivação é complexa: ponto cego numa explicação sócio-histórica para esse tipo de bizarrice, segundo a qual não se trataria de déficit moral ou cognitivo dos agentes, mas da precária interlocução política no espaço público. É uma hipótese que aposta no poder agregativo da ideologia.

A lógica do diálogo público não dá conta, entretanto, da anômala surdez seletiva no predomínio mental da informação sobre a experiência prática. Confinados a suas golpistas bolhas informativas, os deputados amotinados eram surdos à liturgia parlamentar e à percepção de que perpetravam o que não se pode em uma República: a desmoralização do Congresso.

A realidade paralela nas redes bolsonaristas equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos. Uma infantilização adulta que faz lembrar a revolta sem causa da adolescência. Em vez de consciência de si, delírio performativo, com um fio condutor: o golpismo que, sem ousar dizer o seu nome, dá lugar de fala à doença. Mas não se trata de doença mental entendida em termos individuais como delírio e sofrimento passíveis de uma remissão psiquiátrica. Não há cura possível para uma afecção de natureza grupal alimentada por ódio e mentira. O único caminho para uma resposta cívica é a imprescindível punição institucional.

Em modo permanente, esse ativismo delirante suprime sentimentos. "Ghosting" é designação corrente, não apenas na internet, para o brusco desaparecimento de um contato. Mas, a fragmentação afetiva, provocada pelas redes e pelo socionarcisismo emergente, é simultânea ao ghosting do sentimento de nação, da convivência democrática e, pelo visto, da maternagem. Um ponto crítico de mirada para o aleitamento do caos.

 

Nenhum comentário: