sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Na maré autoritária, o Brasil nada contra a corrente. Por Flávia Pellegrino

Correio Braziliense

O recado que damos ao planeta e ao nosso próprio país não poderia ser mais claro e vital: a democracia é inegociável, assim como a punição daqueles que contra ela ousam atentar

O dia de ontem não é um fim em si mesmo. É mais um capítulo de um processo inédito de responsabilização e um marco democrático na história do Brasil. Pela primeira vez, aqueles que orquestraram uma ruptura do Estado Democrático de Direito foram devidamente julgados e condenados. O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do núcleo crucial da trama golpista que, entre 2021 e 2023, tentou subverter a Constituição e instaurar um regime autoritário no país. Ao condenar militares de alta patente e lideranças políticas do núcleo central da conspiração, a Corte reafirmou que a lei e a democracia estão acima de qualquer governo, projeto de poder ou liderança política. Foi um gesto inequívoco de resiliência institucional, conduzido dentro das garantias do devido processo legal e da ampla defesa, e que ainda resistiu a pressões vindas do exterior.

Durante décadas, o Brasil trilhou o caminho oposto ao da responsabilização, deixando impunes os que atentaram contra a nossa democracia. Ao final do regime militar, nos anos 1980, a transição pactuada silenciou sobre graves violações de direitos humanos e não puniu aqueles que haviam rompido a ordem constitucional. Essa omissão inaugurou um ciclo perverso em que golpismo e impunidade se retroalimentaram. Agora, quatro décadas depois, o país rompe essa lógica e envia uma mensagem clara: crimes contra a democracia não admitem perdão.

Esse passo histórico, contudo, não elimina as ameaças. Parlamentares seguem empenhados em ressuscitar a lógica da anistia, oferecendo de forma vergonhosa um perdão coletivo que visa blindar aliados políticos. Narrativas contrafactuais e distorcidas buscam relativizar a gravidade da conspiração e transformar criminosos em vítimas. É um retrocesso que, se concretizado, minaria a integridade da ordem democrática e comprometeria a credibilidade das instituições.

Enquanto um congressista brasileiro articula a continuidade do golpe a partir de terras estadunidenses e chantageia o Brasil para livrar seu pai de punição, o governo e a sociedade brasileira mais uma vez reagem com firmeza e altivez. A cena contrasta com a história: se nos anos 1960 os Estados Unidos tiveram um papel central no golpe militar que inaugurou duas décadas de autoritarismo no nosso país, desta vez é a solidez de nossas instituições que ergue uma trincheira pela democracia e pela soberania nacional diante do governante extremista e iliberal que inspirou Jair Bolsonaro em sua cruzada antidemocrática. Se nos Estados Unidos houve a invasão do Capitólio, em 8 de janeiro de 2023 tivemos os ataques em Brasília que foram o ápice de anos de uma postura autocrática e golpista do governo anterior àquela data. Nos mesmos moldes da administração de Donald Trump nos Estados Unidos, tivemos um governo que regularmente incentivou a desconfiança no sistema de votação brasileiro e que ameaçou e motivou ataques às instituições e aos nossos Poderes Republicanos.

Nos últimos 10 anos, o patriotismo e as cores da bandeira brasileira foram sequestrados por setores extremistas e antidemocráticos. Agora, podem e devem voltar a simbolizar um país que amadureceu institucionalmente e que não se deixará chantagear por quem tentou destruir o que construímos a duras penas.

A democracia brasileira ainda possui uma longa trajetória de consolidação e aperfeiçoamento que a permita resgatar a credibilidade de seu sistema e a efetividade de suas promessas. Entretanto, o recado que damos ao planeta e ao nosso próprio país não poderia ser mais claro e vital: a democracia é inegociável, assim como a punição daqueles que contra ela ousam atentar.

Seguimos nadando contra a corrente. Ao destoar da tendência global de autocratização, nosso país se apresenta como exemplo de resiliência democrática e esperança concreta contra as forças autoritárias que avançam em tantas nações. A lição é inequívoca: a verdadeira pacificação não nasce do esquecimento, mas da responsabilização; não se constrói com anistia, mas com verdade, memória e justiça. O julgamento e a condenação dos golpistas estabelecem para o presente e para o futuro: a democracia é inegociável.

 

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