O Estado de S. Paulo
Vivemos num mundo no qual vem se verificando uma nova distribuição dos elementos constitutivos do poderio dos Estados
Incertezas pesam sobre a inserção
internacional do Brasil. Os economistas distinguem o risco da incerteza. O
risco tem inúmeras dimensões que se multiplicam no mundo contemporâneo, mas
comporta a possibilidade de avaliação, com alguma orientação de previsibilidade.
O que diferencia a incerteza do risco é a efetiva dificuldade de estimativa e
cálculo. O novo do cenário internacional é a intensidade das incertezas. Neste
novo quadro de relações cambiantes, a tendência aos conflitos prevalece sobre o
potencial de cooperação.
Um ingrediente das incertezas se expressa na erosão de prévios e usuais padrões da lógica do aceitável na vida internacional, como o de desenvolver relações amistosas entre as nações, fortalecedoras da paz. É o que vem colocando em questão as normas que promanam desses padrões, comprometendo duas correlacionadas funções diretivas do Direito Internacional: a de informar sobre as prováveis condutas dos atores internacionais e a de indicar critérios do admissível.
O que caracteriza a situação atual é que a
análise de como alcançar objetivos de política externa não se cinge a uma
avaliação das conjunturas de riscos e oportunidades. É igualmente um confronto
com a multiplicação, em escala global, de incertezas e inesperados.
Esta observação, de ordem geral, incide
igualmente nos desafios que se colocam para a calibragem estratégica da
política externa do nosso país. Daí os obstáculos nesta calibragem de saber a
que ater-se nos múltiplos campos relacionados ao trato da inserção
internacional do Brasil, experienciados num mundo do qual fazemos parte, na
nossa especificidade – cabendo sempre lembrar nas circunstâncias atuais a
advertência de Guimarães Rosa: “O mundo não dá a ninguém inocência nem
garantia”.
Vivemos num mundo no qual vem se verificando
uma nova distribuição dos elementos constitutivos do poderio dos Estados. É o
que explicita a atual multipolaridade. No seu âmbito, tem vigência a tensão do
conflito de hegemonia que instiga o relacionamento entre Estados Unidos e
China, com seus desdobramentos nas esferas regionais.
Essa tensão não é uma tensão predominante,
estruturadora da ordem mundial como foi historicamente a bipolaridade entre
Estados Unidos e União Soviética no período da guerra fria. Não é a expressão
da primazia americana, que a ela sucedeu depois da queda do Muro de Berlim, que
também propiciou uma ordem mundial dotada de um grau razoável de
previsibilidade. Trata-se de um momento de cisão da relação ordem/poder que tem
a sua fonte na presente multipolaridade. Essa é centrífuga nas suas tensões
difusas e vem abrindo muito espaço à intransitividade da geografia das paixões
e à geopolítica, com sua ênfase no controle político dos espaços, insumos e
matérias-primas.
No sistema interestatal heterogêneo de
multipolaridade, verifica-se um crescente afastamento do Poder do Direito.
Direito e Poder são as duas faces de uma mesma moeda, como ensina Bobbio, em
que, quando se desconectam, dá-se um contexto no qual, “o Poder sem Direito é
cego; o Direito sem Poder é vazio”.
Esse distanciamento ajuda a esclarecer a
emergência do unilateralismo de uma diploma
cia de combate que se converte em instrumento
de manutenção das incertezas das tensões internacionais e que propende à
“ascensão aos extremos”.
Disso são exemplos: (i) a guerra da Ucrânia
conduzida pela Rússia de Putin, que é uma guerra de conquista que fere o
princípio estabilizador do respeito à integridade territorial dos Estados,
gerando uma insegurança internacional de alcance geral; (ii) a reação cega e
desmedida de Israel, do governo Netanyahu, na condução das operações bélicas em
Gaza. Essas ações transformaram um direito de defesa no ilícito do desrespeito
em larga escala ao direito humanitário, com incidência nas normas do Direito
Internacional Penal e impacto desestabilizador no Oriente Médio.
Da diplomacia de combate também é um exemplo
o “tarifaço” imposto ao Brasil pelo unilateralismo decisionista, destituído de
padrões jurídicos, do governo Trump. Este se contrapõe às normas de comércio
internacional da OMC e à lógica do admissível das negociações provenientes da
discussão de conflitos de interesse. É um ato inamistoso. Fere a Declaração de
1970 da ONU sobre os Princípios do Direito Internacional sobre as relações de
amizade e cooperação entre os Estados – um desrespeito que tem um alcance
geral, pois a diplomacia de combate caracteriza a atuação do governo Trump na
tensão desestabilizadora das incertezas dos seus generalizados tarifaços.
No caso do Brasil, a diplomacia de combate de
Trump tem algo de uma situação-limite, pois o “tarifaço” não é uma proposta de
renegociação tarifária. É uma combinação política e econômica de represálias,
retorsões e ímpetos de intervenção. São categorias mais próximas do que se
discute no trato do Direito de Guerra do que se examina no Direito de Paz.
Está, assim, em sintonia com a deliberação do presidente Trump de mudar o nome
do Departamento de Defesa dos Estados Unidos para Departamento de Guerra.
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