STF não pode esmorecer no controle de emendas
Por O Globo
Dino faz bem em levar ao plenário casos que revelam abusos flagrantes e em tentar impor transparência
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino faz bem em não se intimidar com a pressão do Congresso e em levar adiante os processos despertados pelos abusos flagrantes com recursos de emendas parlamentares. Na véspera da aprovação pela Câmara da PEC da Blindagem, Dino suspendeu repasses a nove de dez municípios que receberam R$ 725 milhões e foram auditados pela Controladoria-Geral da União (CGU). No dia seguinte à aprovação da PEC, deu prazo para Procuradoria-Geral da República (PGR) e Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestarem nas três ações sobre emendas, que em breve pretende levar a plenário.
A auditoria da CGU nas nove cidades cujos
repasses foram suspensos dá uma ideia do mecanismo perverso que rege esse
universo opaco — e de por que os parlamentares tanto insistem em se blindar das
investigações. Ao todo, 25 congressistas foram apontados como responsáveis por
transferências diretas ao caixa dos dez municípios, por meio da modalidade que não
exige plano de trabalho nem acompanhamento, conhecida como “emenda Pix”. Depois
da intervenção de Dino, a CGU deslindou vários episódios suspeitos,
encaminhados à PF para investigação.
Um deles, revelou reportagem do GLOBO, tem
como protagonistas o ex-deputado Jhonatan de Jesus e seu pai, o senador Mecias
de Jesus (ambos do Republicanos-RR). Jhonatan destinou R$ 3,8 milhões à
Prefeitura de Iracema (RR) entre 2020 e 2021. De acordo com a auditoria, as
obras previstas não saíram do papel. Uma unidade móvel odontológica foi
comprada, diz a CGU, por preço 37% superior ao valor de mercado e, na hora da
inspeção, não tinha luvas, máscaras ou indícios de uso. Jhonathan e o pai
enviaram R$ 5,2 milhões a outra cidade roraimense, São Luiz do Anauá. Uma das
vans destinadas a profissionais de saúde, comprada com o dinheiro das emendas,
foi usada em transporte para eventos religiosos. Ambulâncias foram entregues
sem portas adequadas, e obras estavam paralisadas. Mecias diz apoiar a
fiscalização e atribui a responsabilidade pelo apurado à gestão dos municípios.
Histórias do tipo se repetem Brasil afora. Em
Carapicuíba (SP), os auditores foram incapazes de confirmar o destino de R$ 7,7
milhões num repasse de R$ 8 milhões. Em Macapá (AP), os auditores suspeitam de
licitação fraudada. Em São João do Meriti (RJ), foram encontrados indícios de
R$ 2,6 milhões em superfaturamento. Em Sena Madureira (AC), a Prefeitura foi
incapaz de comprovar a entrega do combustível que diz ter comprado com R$ 1,8
milhão. No Rio de Janeiro, a auditoria apontou superfaturamento de R$ 202 mil
na compra de portas acústicas para teatros (a Prefeitura e os envolvidos negam
irregularidades).
Os recursos distribuídos por meio das emendas
têm crescido vertiginosamente, com pouca ou nenhuma transparência. Em 2010,
equivaliam a R$ 7,9 bilhões. Neste ano somam R$ 50,4 bilhões. Não há país onde
parlamentares controlem quase 25% dos gastos não obrigatórios do governo. Já é
lamentável o desperdício intrínseco à distribuição de tanto dinheiro por
critérios paroquiais, em vez de políticas embasadas. O mínimo a exigir, como faz
Dino, são regras de transparência e rastreabilidade. As medidas aprovadas pelo
Congresso foram insuficientes para sanar as deficiências. O STF deve apoiar
Dino na iniciativa para maior controle. Não pode esmorecer.
Se ficar no exterior, Eduardo Bolsonaro deve
perder mandato de deputado
Por O Globo
Ultrapassado o limite de faltas ditado pela
Constituição, não restará alternativa a não ser cumprir a lei
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP)
abandonou seu cargo e viajou para os Estados Unidos para fazer pressão junto ao
governo Donald Trump numa tentativa de chantagear a Justiça brasileira, para
que recuasse no julgamento de Jair Bolsonaro e dos demais acusados pela
tentativa de golpe. Felizmente fracassou ao apostar na submissão do Judiciário.
Mas obteve êxito em Washington. Trump impôs sanções contra ministros do Supremo
e sujeitou o Brasil ao patamar mais alto em seu tarifaço. Agora, precisa arcar
com as consequências de seus atos. O mais correto seria a Câmara julgá-lo por
quebra de decoro, dada sua atuação contra os interesses do Brasil. Diante da
hesitação dos colegas, porém, no mínimo é preciso cumprir o artigo da
Constituição que trata da perda de mandato.
Deputados federais não podem se ausentar de
mais de um terço das sessões ordinárias. Estão previstas faltas justificadas e
pedidos de licença. Inicialmente, Eduardo ficou licenciado por 122 dias — dois
para um alegado tratamento de saúde e 120 para tratar de “interesses pessoais”.
Agora, caminha para ultrapassar o limite regimental de faltas e pretende salvar
o que resta do mandato a qualquer custo. Chegou a enviar carta ao presidente da
Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), com pedido de autorização para continuar
a exercer o mandato em seu exílio voluntário, alegando “perseguição política”,
sob a justificativa estapafúrdia de que tem trabalhado na “diplomacia
parlamentar”.
Por óbvio, não é preciso estar fora do Brasil
para manter laços com o exterior. A base da máquina diplomática do país está em
Brasília. Não existe o cargo de parlamentar diplomático sediado fora do país.
Seus eleitores o escolheram para representá-los na Câmara, não no Capitólio ou
na Casa Branca. Eduardo cita o trabalho remoto durante a pandemia como
possibilidade, mas o momento atual é outro. Não há emergência sanitária que o
impeça de comparecer às sessões no Congresso.
Diante da resistência de Motta, o bloco
bolsonarista adotou uma manobra insólita: nomeou Eduardo líder da minoria na
Câmara. Para isso, a deputada Caroline de Toni (PL-SC) renunciou ao posto e, em
nota, confessou a motivação personalíssima do ato: “Tomamos essa decisão
convictos de que o Brasil precisa de união e coragem, diante das perseguições
que Eduardo e Jair Bolsonaro vêm sofrendo”.
Lideranças no Congresso têm, desde 1997, a prerrogativa de não justificar faltas, mas desde que para exercer funções de articulação política. No caso de Eduardo, ele não tem como fazer isso em Washington. Também não há perseguição, apenas o cumprimento da Constituição e de decisões da Justiça. A lei não pode ser alterada de maneira casuística, tampouco interpretada ao sabor dos acontecimentos. Uma vez ultrapassado o limite de faltas, a Mesa da Câmara terá de decretar, sem subterfúgios, a perda de seu mandato. Depois de perdê-lo, Eduardo poderá se candidatar novamente no ano que vem e ser avaliado pelos eleitores. Agora, não há alternativa.
Eliminar excessos nas penas por golpe, sim;
anistia, não
Por Folha de S. Paulo
Nomeação de relator distante do bolsonarismo
leva a crer que perdão ansiado por radicais não vai prosperar
Reformar penas preserva o STF como árbitro
dos processos; já a anistia significaria ajoelhar-se diante dos depredadores da
democracia
Deflagrou-se na Câmara dos
Deputados o processo para votar em breve um projeto de lei que,
segundo o desatino da direita radical, serviria para perdoar todos os
condenados por atentar contra a democracia, inclusive o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL), sentenciado pelo
Supremo Tribunal Federal a 27 anos e três meses de prisão.
Nesta quarta-feira (17), 311 dos 513 deputados
aprovaram o requerimento dando urgência à tramitação do tema.
Mas movimentos de coxia e de proscênio levam a crer que o texto a ser apreciado
no plenário tratará de corrigir o excesso de penas da legislação vigente, e não
de promover a anistia ansiada pelos bolsonaristas.
Paulinho da
Força (Solidariedade-SP), designado relator do projeto pelo
presidente Hugo Motta (Republicanos-PB),
está distante da
esfera de influência dos radicais de direita e mantém
interlocução com o governo petista e o ministro Alexandre de
Moraes.
Ventila-se que o teor de seu relatório deve
seguir uma linha semelhante à defendida informalmente pelo presidente do Senado, Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP),
de reformar a lei penal para que os crimes contra a ordem constitucional tenham
penas e aplicação mais razoáveis.
Buscar abolir o Estado de Direito e tentar
derrubar um governo constituído significam, na prática, a mesma lesão. Pela
primeira via —um autogolpe— ou pela segunda se busca o resultado de instalar
uma tirania. Esses crimes foram, no entanto, formulados e aplicados como se
fossem autônomos, com penas somadas que chegam a 20 anos de prisão.
Essa sobreposição levou depredadores da
arraia miúda do 8 de Janeiro a pegarem até 17 anos de prisão e potencializou as
penas do núcleo de comando julgado com Bolsonaro. Desfazer essa
duplicação seria um caminho legítimo e constitucional a
percorrer.
Se a reforma da lei avançar, não haveria
redução automática de penas. A revisão das sentenças transitadas em julgado e a
aplicação do novo marco caberiam ao Supremo, com base no princípio de que a lei
penal pode retroagir em benefício do réu. O tribunal ficaria preservado,
portanto, como árbitro de todo o processo.
Já aprovar uma anistia irrestrita, como
pleiteia o bolsonarismo, seria uma genuflexão abominável diante de quem
pretendeu destruir a democracia brasileira. Estaria perdido o efeito mais
importante da punição, que é o de inibir futuras aventuras liberticidas.
Além disso, do ponto de vista prático, a
iniciativa da anistia estaria fadada ao fracasso ou a criar mais um indesejável
impasse institucional, pois o STF já
decidiu, em caso anterior, que crimes contra a ordem democrática não podem ser
objeto de perdão.
Por isso é preciso atenção ao trâmite do
projeto na Câmara. Por mais que haja a boa vontade inicial de adotar a via
constitucional e reformista de aplacar os excessos da lei, representantes dos
saqueadores da democracia não perderão oportunidade de tentar viabilizar a
deplorável anistia.
Mais do que dinheiro, gestão
Por Folha de S. Paulo
Com uso estratégico de recursos, cidades
pobres superam outras mais ricas em indicadores de saúde
A taxa de mortalidade materna em Fortaleza,
20ª colocada em PIB per capita, é menor do que em Brasília, o maior PIB per
capita do país
Levamento
realizado pela Umane (associação civil sem fins lucrativos que
apoia iniciativas em saúde pública),
com base em informações do DataSUS, mostra as já conhecidas disparidades
regionais no setor, mas também que uma alocação racional do dinheiro público
pode ser mais eficaz do que o montante de recursos disponíveis.
A pesquisa avaliou três indicadores no ano de
2023: mortalidade infantil de crianças menores de um ano, mortalidade materna e
mortes prematuras (de pessoas entre 30 e 69 anos) por doenças
crônicas não transmissíveis.
Cruzando os dados, as cinco capitais nas
primeiras colocações, por ordem, são: Brasília,
Florianópolis, Curitiba, Vitória e Fortaleza,
enquanto Salvador, Recife, João Pessoa, Teresina e Manaus estão nas últimas
posições.
Fortaleza chama a atenção. Segundo os dados
mais recentes do IBGE, de 2021, ela está no 20º lugar entre as 27 capitais do
país em Produto Interno Bruto per capita (R$ 27.164); já Brasília está no topo
da lista (R$ 92.737).
Além disso, considerando apenas a mortalidade
materna, a taxa de mortes de mulheres relacionadas a gravidez por 100 mil
nascidos vivos na cidade do Nordeste (33,70) é inferior à da capital do Distrito
Federal (36,18).
Para cada indicador, a pesquisa selecionou as
13 capitais mais bem colocadas. Ainda em mortalidade materna, São Paulo —3º
maior PIB per capita— está na 13ª posição, com taxa de 37,11, atrás até
de Belém (31,52),
penúltima em PIB per capita (R$ 22.216).
Em relação às mortes prematuras por doenças
crônicas não transmissíveis (como diabetes e hipertensão),
São Paulo sequer consegue entrar no top 13 —Brasília lidera com 198,14 óbitos
por 100 mil habitantes, seguida por Palmas (217,14) e Aracajú (241,09).
Florianópolis (6,41), Curitiba (7,72) e Porto
Alegre (8,48) têm as taxas mais baixas de mortalidade infantil. A capital
paulista está no 7º lugar (10,71), e Brasília (10,74) vem em seguida.
A Folha ouviu as prefeituras, e o
que se nota como denominador comum entre cidades bem colocadas é o
direcionamento de recursos para áreas de maior vulnerabilidade, com uso
de tecnologia da
informação, telemedicina, campanhas contínuas para gestantes e grupos de doenças
crônicas, foco na atenção primária em saúde, entre outras medidas.
Além disso, experiências de sucesso em determinadas localidades podem ser adaptadas em outras. Também seria de grande ajuda se governos nas três esferas cuidassem melhor dos seus orçamentos; dados os déficits observados, há muito a ser feito.
PEC da blindagem precisa ser rejeitada pelo
Senado
Por Valor Econômico
É preciso restaurar a moralidade no Congresso
e evitar um conflito institucional entre Poderes
A Constituição assegura a igualdade de todos
os brasileiros perante a lei, mas a Câmara dos Deputados, com a aprovação da
PEC 3/2021, entendeu que os parlamentares têm de ser mais iguais que os outros.
O projeto estabelece que deputados e senadores não devem se submeter aos
procedimentos da Justiça, manietando prerrogativas do Supremo Tribunal Federal
para adotar regras próprias de autoproteção. São pelo menos duas cláusulas
pétreas da lei magna que estão sendo desrespeitadas nesse caso — da isonomia e
da separação de Poderes. É espantoso que o Congresso, responsável por fazer as
leis que regem o país, seja o ator principal de seu enxovalhamento.
A PEC da Blindagem exige que qualquer
processo legal, cível ou criminal, que envolva deputados e senadores terá de
ser no fim das contas submetido e aprovado por seus pares no Congresso. Mesmo
casos de crimes inafiançáveis, como racismo, tráfico de drogas, terrorismo e
crimes contra o Estado de Direito, com prisão em flagrante, terão de ser
avaliados pelo Congresso, que pode rejeitá-los e decidir pela soltura dos
suspeitos.
Uma manobra regimental reinstituiu na PEC a
votação secreta em caso da autorização ou não de processos judiciais contra
parlamentares, derrotada na primeira votação. Os pretextos foram marotos ou
vergonhosos. O primeiro argumento, geral e aceito pelos 344 deputados que deram
aval ao projeto, inclusive 12 do PT, foi que era preciso acabar com a
perseguição do STF ao Congresso, prosa falsa que tem similitude com a de Jair
Bolsonaro, que a utilizou antes, durante e depois da tentativa de golpe. O
segundo é que apenas se restabeleceria regra que vigorou desde 5 de outubro de
1988, quando a Constituição foi promulgada, até 2001.
A Constituição de 1988, aprovada após o
regime ditatorial, acolhia os procedimentos agora ampliados pelo Congresso,
como reação aos abusos do passado de trevas da ditadura militar. Em 1968, a
ditadura tentou cassar o deputado Márcio Moreira Alves por discursos feitos no
parlamento. Em 12 de dezembro, o Congresso, com altivez, a recusou, por 216
votos a 141. No dia seguinte, vieram o AI-5 e o fechamento das frestas de
liberdade que ainda haviam no regime.
A situação atual é absolutamente distinta.
Congressistas não correm o risco de penalidades por opiniões e dispõem de foro
privilegiado no exercício dos mandatos. É uma liberdade ampla, como demonstra a
carreira de 28 anos do deputado Jair Bolsonaro, que pregou ao longo do tempo a
tortura, crime inafiançável, e elogiou torturadores e a ditadura militar, um
regime que considerava ideal.
Enquanto vigorou o dispositivo que agora se
tenta ressuscitar, apenas um entre 253 pedidos enviados ao Congresso foi aceito
— o de um deputado que receptava carros roubados. Se a rapidez e o denodo com
que a Comissão de Ética da Câmara e o Conselho de Ética do Senado punem quem
fere o decoro parlamentar servem de exemplo, ao que tudo indica a PEC servirá
de escudo contra qualquer tipo de sanção a congressistas.
Recentemente, com a ampliação dos poderes do
Congresso sobre as emendas, que capturam R$ 50 bilhões anuais do Orçamento, a
preocupação com a Justiça pelos parlamentares esteve mais voltada às
investigações determinadas pelo Supremo sobre desvio de verbas. Há ao menos 80
delas, envolvendo deputados e senadores no âmbito do STF, além de CPIs, como a
da Previdência, que indicam a suspeita de participação de membros do
Legislativo nas falcatruas que lesaram algo como R$ 6 bilhões dos aposentados.
A PEC aprovada inclui presidentes de partidos
políticos, mesmo sem mandato, no foro privilegiado, ao mesmo tempo em que
retira do STF a autonomia para processá-los. Pela grande quantidade de recursos
que passa pelas cúpulas partidárias, R$ 1 bilhão de fundo para partidos, mais
R$ 5,9 bilhões de fundo eleitoral, a imunidade legal pode ser um presente para
políticos mal-intencionados. Além disso, a PEC, que vai agora ao Senado, é um
grande atrativo para o crime organizado, dispensando intermediários, ao
colocá-los, uma vez eleitos, praticamente fora do alcance das leis.
As iniciativas de buscar autoimunidade ante a
Justiça, assim como as mudanças na Lei da Ficha Limpa, são novas tentativas dos
parlamentares de escapar de qualquer controle dos outros Poderes, como tem
ocorrido no caso das emendas, agora uma fonte permanente de conflitos diante
das suspeitas cada vez mais frequentes de desvios de finalidade e de recursos.
A Câmara demonstra também pouco respeito pela atividade parlamentar se aceitar
e tratar como um caso menor a nomeação, pelo PL, do deputado Eduardo Bolsonaro,
desde março no exterior, como líder da minoria, para justificar suas faltas e
impedir que ele perca o mandato. Bolsonaro incita Trump a punir o Brasil para
tentar salvar seu pai do acerto de contas com a Justiça. As tarifas de 50%
impostas pelos EUA para produtos brasileiros causará prejuízos de bilhões de
reais a empresas do país.
O Senado tem o dever republicano de rejeitar a PEC da Blindagem vinda da Câmara, restaurar a moralidade no Congresso e evitar um conflito institucional entre Poderes.
É isto uma democracia?
Por O Estado de S. Paulo
A pretexto de reagir ao assassinato de um
ativista conservador, Trump coloca a máquina do Estado contra quem ele
considera dissidente. É um desastre moral para o outrora ‘farol da democracia’
O tiro que matou o ativista conservador
Charlie Kirk acertou em cheio a jugular da democracia liberal americana. O
atentado foi um ataque ao mecanismo que permite cidadãos resolverem conflitos
sem se ferirem: a palavra. “Quando as pessoas param de conversar, é aí que você
tem violência.” Essa verdade, dita pelo próprio Kirk, deveria guiar a reação.
Em vez disso, o que se vê é o emprego do aparato persecutório do Estado para
punir quem fala o que desagrada. É uma violação legal e um desastre moral.
A esquerda iliberal há anos equipara palavras
a “violência”, cria categorias elásticas como “discurso de ódio” e aplaude o
cancelamento. O resultado está à vista nas universidades: uma geração treinada
a ver o dissenso como agressão e disposta a aceitar a agressão como resposta ao
dissenso. Pesquisas mostram que um em três estudantes considera justificável
“em alguns casos” usar violência para impedir um orador. Essa corrosão ajuda a
explicar por que tantos celebraram a morte de um adversário. Eles merecem
reprovação moral e contestação pública, não linchamentos digitais.
Seria de se esperar da direita um contrapeso.
Mas o que se vê é o trumpismo copiar o manual que condenava. No país cuja
Suprema Corte definiu que mesmo ideias odiosas são protegidas pela Primeira
Emenda, salvo em caso de risco de violência claro e iminente, a secretária de
Justiça prometeu “ir atrás” de quem praticar “discursos de ódio”. O
vice-presidente incentiva patrulhas virtuais contra os que zombaram da tragédia.
O chefe da agência reguladora de radiodifusão ameaça cassar licenças para
constranger emissoras. E o próprio presidente volta a mover ações bilionárias
contra jornais e jornalistas, e fala em classificar entidades civis como
“terroristas” ou em revogar isenções fiscais por motivos políticos. Isso não é
justiça. É justiçamento e perseguição.
Adicionando insulto à agressão, tal
comportamento trai o legado de Kirk da maneira mais brutal. Seu trabalho –
controvertido no conteúdo, claro no método – era interpelar, ouvir, responder,
insistir. Mas a direita trumpista aproveita-se do luto como combustível para
uma cruzada punitiva, equiparando palavras a violência para justificar coerção
oficial. O resultado previsível é mais silêncio forçado, mais ressentimento,
mais incentivos a soluções de força. Repressão não desarma radicais;
oferece-lhes a narrativa de mártir e empurra moderados para a autocensura.
Uma sociedade livre precisa de dois
princípios gêmeos: tolerância máxima ao discurso e tolerância zero à violência.
O primeiro não é um favor ao “nosso lado”; é um seguro democrático para todos,
especialmente minorias e dissidentes. Foi essa aposta que fez dos EUA uma
exceção: nazistas e comunistas podem marchar; fanáticos, insultar; artistas,
ultrajar – e a resposta legítima é crítica, protesto, sátira, boicote e mais
discurso. O segundo princípio protege o primeiro: quem ameaça, agride, bloqueia
palestras ou destrói propriedade para calar o outro deve ser contido e punido,
com o rigor da lei.
Os americanos sabem, por amarga experiência,
que a censura não reduz ódio; empurra-o para subterrâneos onde se radicaliza. E
sabem, por tradição constitucional, que “discurso de ódio” não é categoria
jurídica. O caminho civilizado é outro: proteger a praça pública, reforçar a
segurança de eventos controversos, punir quem recorra à força e recusar que
governos, de esquerda ou de direita, transformem o gosto do príncipe em lei. Há
espaço para decência privada – inclusive demitir quem viola códigos internos –,
mas não para a polícia das opiniões.
O futuro da democracia americana dependerá da
capacidade de lideranças e instituições de rejeitar o iliberalismo, venha de
onde vier. Isso exige, mais do que decretos e coletivas, coragem cívica.
Coragem de suportar o abjeto sem criminalizá-lo; de discutir com quem erra sem
destruí-lo; de lembrar, em meio ao trauma, que o antídoto da violência é mais
debate, não menos. Quem quiser honrar a vítima, que honre o princípio pelo qual
viveu e morreu: a máxima tolerância à opinião e a intolerância absoluta à
violência.
O bom senso do BC
Por O Estado de S. Paulo
Banco Central sinaliza que, enquanto os dados
indicarem inflação fora da meta nos próximos meses, a queda de juros seria
imprudente. Baixar a taxa depende muito mais do governo que do BC
A projeção de inflação acima da meta pelo
próximo um ano e meio – o tal “horizonte relevante”, sempre destacado nas
avaliações do Banco Central (BC) – basta para justificar a decisão do Comitê de
Política Monetária (Copom) de manter a taxa básica de juros (Selic) estacionada
nos atuais (e pesados) 15% ao ano. Lá está, no comunicado da reunião do Copom,
que a projeção oficial para o primeiro trimestre de 2027, com base no cenário
atual – que inclui o alto nível de juros –, é de 3,4% ao ano, acima, portanto,
da meta de 3% que o BC é obrigado a perseguir.
Ainda que o sistema de metas permita o
intervalo de 1,5 ponto porcentual para cima ou para baixo, a decisão comprova
que o Copom preferiu agir no modo segurança, mirando o centro do alvo, a fazer
apostas em eventuais mudanças benignas de cenário no futuro. A considerar a
probabilidade de aumento de gastos públicos que costuma ocorrer em períodos
eleitorais, a campanha presidencial largamente antecipada que já se observa e o
aumento das incertezas externas sob a batuta destrambelhada de Donald Trump,
seria de fato uma aposta de altíssimo risco.
Desde a adoção, em janeiro, do novo sistema
de meta contínua, que verifica mês a mês o resultado da política monetária
sobre o IPCA, a inflação rompeu o limite máximo por seis vezes consecutivas, o
que obrigou o presidente do banco, Gabriel Galípolo, a escrever em julho a
carta explicando os motivos do descumprimento. Estavam lá, com destaque, ainda
que não com essas palavras, a economia sobreaquecida (em especial por políticas
de incentivo), a perda de credibilidade do mercado (desancoragem) e a
depreciação cambial.
Nada substancialmente positivo aconteceu
desde então para trazer as expectativas de inflação a um patamar mais baixo de
maneira sólida. Houve algumas melhoras pontuais, como a primeira deflação do
ano, em agosto (-0,11%), mas com grande contribuição de fatores extras, como a
redução nas contas de luz daquele mês. O mercado de trabalho aquecido, com a menor
taxa de desemprego da História (5,6%), eleva a pressão inflacionária.
Há dez trimestres consecutivos – desde o
início de 2023, portanto –, a economia brasileira cresce acima de sua
capacidade, de acordo com levantamento da Fundação Getulio Vargas. A demanda
aquecida é um poderoso motor inflacionário e pode ser explicada em grande parte
pelos incentivos do governo ao consumo. Mas, para o gastador Lula da Silva, a
inflação “está razoavelmente controlada”, como declarou em fevereiro, quando o
IPCA em 12 meses já passava de 5%.
No mesmo dia em que o Copom decidiu manter
inalterada a taxa de juros de 15%, em vigor desde junho, o Fomc (o Copom
norte-americano) reduziu em 0,25 ponto porcentual a taxa básica dos Estados
Unidos, para o intervalo entre 4% e 4,25%, sob forte pressão do governo Trump.
Indicou, ainda, que deve fazer mais duas reduções ainda neste ano, numa decisão
amparada em dados imprecisos, como o aumento da ocupação resultante da política
anti-imigração de Trump, que trouxe ainda mais instabilidade ao mercado internacional,
já sacudido pelo tarifaço. Para o Brasil, no curto prazo deve representar um
maior fluxo de dinheiro, capital especulativo atraído por juros mais altos.
Efeitos extraordinários devem continuar a ter
peso secundário sobre a decisão do BC. São os fatores estruturais que importam,
como uma política fiscal crível, comprometida com a sustentabilidade da dívida.
Ao contrário do que costuma acontecer com a meta fiscal, em que expectativas de
arrecadação e despesas são constantemente “calibradas” de acordo com o
interesse do governo, a definição da Selic tem recorrido a dados efetivos e
duradouros.
Quando a estimativa para o “horizonte
relevante” chegar (e se mantiver) ao centro da meta, haverá segurança para
afrouxar a política monetária. Mas isso não depende tanto do banco, que atua
mais como um “guardião” da meta e para isso estica a corda até o ponto de não
causar recessão. No conjunto dos fatores de maior influência, o equilíbrio das
contas públicas ocupa papel relevante.
A obsessão de Nunes
Por O Estado de S. Paulo
Prefeito diz que vai tentar de novo afrouxar
Psiu, mesmo após TJ-SP ver inconstitucionalidade
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes,
parece determinado em perseverar nos seus erros. Ele pretende elaborar um novo
projeto de lei para flexibilizar o Programa Silêncio Urbano (Psiu), mesmo após
o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) afirmar há poucos dias que uma de
suas tentativas de afrouxar esse instrumento é inconstitucional. Nem essa
decisão cristalina bastou para que Nunes retomasse o bom senso, o que indica
que o prefeito dobrará a aposta.
Não seria a primeira vez que Nunes ataca o
Psiu. O Executivo já articulou emendas em projetos que estavam em andamento no
Legislativo no intuito de abrandar a lei. Na mais recente investida, enfiou
numa proposta que versava sobre aterros sanitários a exclusão de fiscalização
do Psiu para shows com público de 5.001 a 40 mil pessoas. É o que, no jargão
legislativo, chama-se de “jabuti”, haja vista que, como afirmou o TJ-SP, o tema
“não guarda pertinência temática com o projeto original”. Para piorar, conforme
a decisão, “não houve participação popular específica na emenda”.
Nada disso são firulas, mas exigências
formais do processo legislativo que lhe dão legitimidade. Nunes, ao que tudo
indica, não se importa. Em visita a um festival de música, manifestou seu
inconformismo dizendo que “o Tribunal de Justiça gosta, às vezes, de encontrar
algum questionamento”, o que ele disse lamentar. O prefeito criticou uma
suposta “perseguição” aos grandes eventos, o que, segundo ele, não passa de uma
“grande balela” de quem se diz “‘pseudodefensor’ do som e da incomodidade (sic)”. Disse que agora vai enviar
um projeto específico, para enfraquecer o Psiu, sob o argumento de que a cidade
precisa de “emprego e renda”.
Mas o que o prefeito chama de perseguição e
diz lamentar é, na verdade, uma decisão judicial que restituiu o direito dos
paulistanos de manifestarem sua insatisfação quando têm o seu sossego
perturbado. Ademais, o respeito ao processo legislativo não deve ser
menosprezado por uma autoridade pública que, decerto, sabe que o Legislativo e
o Executivo só podem elaborar, discutir e aprovar matérias de acordo com
parâmetros democráticos, como as regras materiais e formais, a participação
popular e, sobretudo, os preceitos constitucionais. E, por fim, mas não menos
importante, não há notícias, evidências ou dados de que a cidade de São Paulo
dependa da algazarra e do desrespeito ao sossego alheio para crescer, prosperar
e alcançar o desenvolvimento econômico.
Moradores de diversas regiões da capital paulista se uniram recentemente para criar a Frente Cidadã pela Despoluição Sonora, na qual reivindicam o direito de viver numa cidade menos barulhenta e, por consequência, mais harmoniosa, tranquila e saudável. Em vez de insistir em tornar São Paulo hostil, o prefeito Ricardo Nunes tem a chance de, enfim, acertar: ouvir seus cidadãos, desistir da ideia de liberar o caos sonoro e fortalecer o Psiu, com mais rigor e fiscalização, e não menos.
Espírito original do SUS é vital para o país
Por Correio Braziliense
Aos 35 anos, é hora de resgatar o espírito
original do Sistema Único de Saúde — um sistema público, gratuito, eficiente e
humano
O Sistema Único de Saúde (SUS) entrou em
vigor há 35 anos, dois anos após ter sido criado a partir da Constituição
Federal de 1988. Lançado como resposta a um clamor por justiça social e
igualdade no acesso à saúde, o sistema foi inspirado nos princípios da
universalidade, integralidade e equidade, e, não se pode negar, tornou-se um
dos maiores sistemas públicos de saúde do planeta.
Atualmente, é responsável por cerca de 75%
dos atendimentos de saúde no país, segundo o governo federal. Ele abrange desde
o atendimento básico até procedimentos de alta complexidade, como transplantes
de órgãos — área em que o Brasil é o segundo maior do mundo em volume de
transplantes públicos, atrás apenas dos Estados Unidos.
Não é à toa que a revista americana Newsweek
divulgou nesta segunda-feira seu ranking anual dos melhores hospitais do mundo
em 12 especialidades médicas e o Brasil marcou presença com 22 instituições —
sendo sete públicas e 15 privadas. O levantamento considerou recomendações de
profissionais de saúde, dados de acreditação e certificações, e indicadores de
resultados percebidos pelos pacientes, como melhora dos sintomas e satisfação
com o tratamento recebido.
Vale destacar também o protagonismo do SUS
durante a pandemia da covid-19. Em um dos momentos mais críticos da história
recente, o sistema liderou a campanha de vacinação que alcançou mais de 80% da
população com esquema primário completo, reafirmando a expertise do país em
campanhas de imunização em massa. O modelo, inclusive, já foi elogiado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS).
O SUS ainda é responsável por ações que vão
muito além do atendimento médico: controle de endemias, vigilância sanitária e
epidemiológica, distribuição gratuita de medicamentos, saúde mental, saúde
indígena e ações de saneamento básico. Tudo isso em um país continental, com
mais de 5.500 municípios e imensas desigualdades regionais.
No entanto, especialistas daqui e de fora
também apontam suas fragilidades. A desigualdade no acesso — especialmente em
áreas rurais e periféricas —, os longos tempos de espera e a fragmentação dos
serviços são vistos como entraves à eficiência do sistema. Da mesma forma,
preocupa a dificuldade para o fortalecimento do setor primário — voltado para a
prevenção e, portanto, mais estratégico do ponto de vista da saúde
pública.
Outro problema crônico é o subfinanciamento.
Segundo dados do Conselho Nacional de Saúde, o Brasil investe cerca de 9,6% do
PIB em saúde, mas apenas 3,9% são recursos públicos, nível inferior à
média de países com sistemas universais. A título de comparação, o Reino Unido
investe aproximadamente 7,5%.
A Emenda Constitucional 95, que congelou os
gastos públicos por 20 anos, agravou essa situação. Entre 2018 e 2022,
estima-se que o SUS tenha perdido mais de R$ 37 bilhões em investimentos. O
impacto é visível: filas para cirurgias eletivas, falta de médicos em regiões
remotas, precariedade de infraestrutura e escassez de insumos básicos. Má
gestão, corrupção e burocracia também corroem a eficácia do sistema e
levam a esses e outros desamparos.
Aos 35 anos, é hora de resgatar o espírito original do Sistema Único de Saúde — um sistema público, gratuito, eficiente e humano. Para isso, não basta só vontade política. É preciso coragem para enfrentar interesses corporativos e colocar a vida acima do lucro. Afinal, trata-se de um lema do SUS: "Saúde é direito de todos e dever do Estado".
Regulação econômica das big techs
Por
O Povo (CE)
Enquanto pautas de agrado dos deputados ganham
precedência na Câmara, projetos de verdadeiro interesse dos brasileiros são
tratados como um embaraço a atrapalhar as prioridades exclusivas dos senhores
parlamentares
A
polêmica aprovação da PEC da Blindagem, na Câmara dos Deputados, e a urgência
para a tramitação do projeto de anistia aos acusados de tentativa de golpe de
Estado, dominaram o noticiário dos últimos, prendendo a atenção do público.
Talvez
por isso tenha ganhado pouco destaque no noticiário um importante projeto de
lei que o governo federal enviou à Câmara dos Deputados, na quarta-feira,
tratando da regulação econômica das big techs. O objetivo é estabelecer medidas
para combater práticas prejudiciais à concorrência no meio digital.
O
projeto propõe ajustes no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para
criar novos mecanismos para impedir o abuso do poder econômico por grandes
plataformas digitais.
Sem
regras estabelecidas, a tendência é que poucas empresas centralizem os dados
dos usuários, reduzindo a competitividade. Assim, as grandes podem impor
condições desleais aos concorrentes menores, como favorecer o próprio serviço.
É
importante esclarecer que o projeto de lei não aborda questões relativas ao
conteúdo. A regulação econômica busca equilibrar o grande poder dessas
plataformas digitais, promovendo uma disputa justa entre as empresas,
resguardando também os direitos do consumidor, como facilitar a portabilidade
de dados de uma empresa para outra.
Para
dar conta dessas novas tarefas, será reforçado o papel do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), com a criação da Superintendência de
Mercados Digitais, cuja tarefa será fiscalizar a atuação econômica das empresas
digitais.
O
Cade poderá estabelecer quais serão as "plataformas sistêmicas" e
definir as obrigações especiais para elas. Enquadram-se como
"sistêmicas" empresas com faturamento superior a R$ 5 bilhões anuais
no Brasil e R$ 50 bilhões de arrecadação mundial.
O
Brasil está atrasado nessa regulamentação. Na União Europeia, a Lei de Mercados
Digitais, que regula os negócios das plataformas, está em vigor desde 2023, com
regras para impedir práticas comerciais abusivas.
Para
o projeto de ajustes no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência virar lei,
será preciso esperar a boa vontade do Congresso Nacional, que está mais
preocupado com seus próprios negócios. Enquanto pautas importantes ficam no fim
da fila, sem previsão de quando serão apreciadas, os congressistas cuidam da
própria proteção. É o caso da aprovação da PEC da Blindagem e a caracterização
de "urgência" para a tramitação da anistia aos golpistas de 8 de
janeiro,
Enquanto
pautas de agrado dos deputados — especialmente os do Centrão e aliados de
Bolsonaro — ganham precedência na Câmara, projetos de verdadeiro interesse dos
brasileiros são tratados como um embaraço a atrapalhar as prioridades
exclusivas dos senhores parlamentares.
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