sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Os limites da indignação. Por Vera Magalhães

O Globo

Convocação para protestos no domingo pela primeira vez une esquerda e setores mais à direita, mas capacidade de mobilização ainda é dúvida

As redes sociais passaram os últimos dias em polvorosa diante dos arreganhos da Câmara dos Deputados. A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional da Blindagem, rapidamente rebatizada de PEC da Bandidagem, conseguiu a façanha cada vez mais rara de unir esquerda e setores da direita.

Mas qual o peso da indignação coletiva nestes tempos em que deputados e senadores já estão relativamente blindados das ruas mesmo antes da aprovação da PEC? O contato desses políticos com suas bases se dá cada vez mais pelo duto das emendas que pelo contato olho no olho, e o voto de opinião se tornou residual ou hiperideologizado.

Fica até relativamente fácil virar as costas para o mínimo bom senso e se fiar na certeza de que, em breve, “todo mundo esquece”, como deputados que celebraram a vitória do rolo compressor de Hugo Motta na Câmara dizem quando questionados a respeito da ousadia da manobra. O próprio Motta, operando de forma que seria vexatória para qualquer presidente da Câmara até bem pouco tempo atrás, tem dito a aliados que se importa mais em costurar “para dentro” que em prestar contas a essa coisa cada vez mais difusa chamada sociedade civil.

A esquerda passará por um teste de mobilização importante neste domingo. Estão convocadas manifestações “em todo o Brasil” contra o combo blindagem-anistia. Artistas, intelectuais e juristas engrossam o coro de “sem anista” e os apelos para que o Senado seja a “voz da razão” num Congresso que parece de costas aos interesses do cidadão pagador de impostos.

Os últimos anos têm mostrado que a capacidade de encher a Avenida Paulista hoje é muito maior na direita, sobretudo pela máquina de mobilização permanente do bolsonarismo e pelo apoio decisivo de denominações evangélicas, que também usam seu aparato de comunicação para encorpar os atos em apoio ao ex-presidente. PT e sindicatos, principais catalisadores de grandes passeatas de esquerda em décadas passadas, perderam massa crítica depois de crises como mensalão e Lava-Jato e não chegaram a recuperá-la nem nos atos pela democracia que ajudaram a impulsionar a derrota de Bolsonaro em 2022.

É fato que os deputados exageraram na dose e podem despertar o senso de cidadania que andava em estado de latência, substituído pelo caminho fácil dos posts indignados nas redes, outro terreno em que, ainda assim, direita e extrema direita costumam vencer de goleada.

O governo, até aqui, tem sido menos relevante nesse enredo que os núcleos coadjuvantes do remake de “Vale tudo”. Todas as manobras acontecem sem que o Planalto consiga influir, e nem a pretensa indignação manifestada por Lula diretamente a Motta foi capaz de fazê-lo sequer hesitar em capitanear esse show de horrores.

Agora, Lula conta com a possibilidade de o Senado estancar as duas medidas indigestas, o que significa se fiar demais na disposição de Davi Alcolumbre de comprar a briga com seus pares do Centrão. Um dos caminhos para fidelizá-lo já está afiançado: seus ministros não serão demitidos na leva de descarte do União Progressista, o consórcio comandado pela dupla Antônio Rueda e Ciro Nogueira, grandes artífices da PEC da Bandidagem harmonizada com anistia para golpistas.

A outra aposta é justamente no renascimento da frente ampla, tendo as manifestações de domingo como estopim inicial. Ministros estão liberados para ir para a rua, e a avaliação do palácio é que, mesmo se não houver sucesso e o tratoraço passar, o ganho de imagem para Lula virá com a percepção de que o governo tenta avançar com pautas de interesse do povo, enquanto o Congresso só trabalha em causa própria. Mas, se os atos floparem, o resultado pode ser o contrário: a comprovação da cínica máxima segundo a qual o “desgaste passa” e, assim, vale a pena ousar ainda mais da próxima vez.

 

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