sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Pacificação a sério. Por Pablo Ortellado

O Globo

O que a oposição está disposta a oferecer para apaziguar o país?

A oposição conseguiu aprovar a tramitação em regime de urgência da anistia na Câmara dos Deputados. A proposta é vendida pela oposição como uma medida para “pacificar” o país, mas, do jeito como está, seu efeito será o oposto. A ideia de pacificação não é sem sentido. Porém uma pacificação de verdade exige contrapartida e não pode significar impunidade para quem cometeu golpe de Estado.

Tarcísio de Freitas é uma das lideranças da oposição que vêm defendendo em discursos públicos a pauta da anistia. Em discurso na Avenida Paulista, no mês de abril, ele lembrou nossa “tradição de pacificação” por meio do perdão:

— Na História do Brasil, sempre tivemos anistia. Foi assim no período colonial. Foi assim no período regencial. Foi assim no Segundo Império. Foi assim no início da República. Vocês sabiam que Prudente de Morais deu anistia para aquelas pessoas que se revoltaram nos primeiros anos da República? Vocês sabiam que Vargas deu anistia para quem participou da Intentona Comunista? Vocês sabiam que Juscelino Kubitschek deu anistia para as pessoas que se revoltaram em 1955? E a Lei da Anistia em 1979? Por que não dar anistia agora?

Como os historiadores vêm lembrando, porém, as inúmeras anistias dadas a golpistas na História do Brasil não levaram à pacificação e à acomodação democrática, mas a novas tentativas de golpe. Em entrevista ao GLOBO, o historiador Carlos Fico lembrou o ineditismo histórico da condenação de Bolsonaro à luz de 136 anos de tentativas de golpes de Estado que relata em seu novo livro:

— Em todos os episódios deste livro, não houve punição devida para militares golpistas. Vou repetir: nunca houve, em mais de uma dezena de tentativas de tomada de poder pela força. Não é figura de linguagem. São 136 anos e nunca aconteceu. Quando se cogitou alguma punição menor, em geral disciplinar, houve anistia. Sempre. O fato de agora existir um inquérito conduzido pela polícia adequada, a Federal, de a Procuradoria-Geral da República ter feito a denúncia ao STF, que aceitou essas pessoas, inclusive os militares, como réus, e elas estão começando a ir a julgamento em contexto de normalidade democrática, é absolutamente inédito. Se houver condenação, será ainda mais inédito. E ineditíssimo se não houver anistia.

Em todos os episódios do passado brasileiro, o perdão foi vendido como pacificação, mas transformou-se em impunidade. A maior parte das anistias não foi concedida por ingenuidade, mas porque quem estava no poder sentia que uma condenação dura não encontraria respaldo nas Forças Armadas e prolongaria ainda mais a instabilidade política. Não é o que vivemos agora. Temos toda a condição de punir os golpistas em relativa estabilidade democrática.

Porém talvez seja o caso de devolver à oposição a demanda por pacificação. O país está muito dividido e se beneficiaria de uma pacificação de verdade. O que a oposição está disposta a oferecer para apaziguar o país? Nos processos históricos de anistias que funcionaram como pacificação, ambas as partes fizeram concessões.

Na Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, a anistia para os crimes cometidos durante o apartheid foi concedida sob a condição de que os responsáveis confessassem e revelassem os fatos relevantes. Os violadores preservaram sua liberdade, mas enfrentaram escrutínio social, constrangimento público e perda de prestígio. As vítimas abriram mão da justiça penal plena, mas conquistaram visibilidade e memória histórica.

Durante os Pactos de Moncloa, no contexto da transição democrática depois da morte de Francisco Franco na Espanha, concessões mútuas também foram feitas. A esquerda aceitou a monarquia, apoiou uma lei de anistia e moderou suas demandas econômicas e sociais, enquanto setores da direita e do franquismo aceitaram eleições livres, legalizaram partidos antes proibidos — incluindo o Partido Comunista —, reconheceram liberdades civis e aceitaram reformas institucionais moderadas.

O processo que levou à condenação de Bolsonaro não foi isento de falhas. A punição imposta àqueles que apenas invadiram as sedes dos três Poderes, sem cometer atos de violência, foi excessivamente severa. Certas medidas que restringiram a liberdade de expressão durante esse período carecem de plena justificativa legal. Além disso, algumas das acusações a Bolsonaro — principalmente as que o ligam ao 8 de Janeiro e ao plano Punhal Verde e Amarelo — não estão baseadas em provas robustas. Talvez um movimento de reconhecimento e revisão desses problemas pudesse ser um ponto de partida, desde que a tentativa de Bolsonaro de intervir militarmente no TSE depois da eleição permanecesse devidamente punida.

Mas uma concessão desse tipo precisaria de contrapartida dos bolsonaristas. Eles estariam dispostos a reconhecer a tentativa de golpe, a aceitar a punição para Bolsonaro e generais e a oferecer algum tipo de garantia de que, de agora em diante, passarão a reconhecer resultados eleitorais? Se não houver disposição para isso, a conversa de pacificação é apenas distração cínica e disfarce para a histórica impunidade ao golpismo.


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