O Globo
O que a oposição está disposta a oferecer
para apaziguar o país?
A oposição conseguiu aprovar a tramitação em
regime de urgência da anistia na Câmara
dos Deputados. A proposta é vendida pela oposição como uma medida para
“pacificar” o país, mas, do jeito como está, seu efeito será o oposto. A ideia
de pacificação não é sem sentido. Porém uma pacificação de verdade exige
contrapartida e não pode significar impunidade para quem cometeu golpe de
Estado.
Tarcísio
de Freitas é uma das lideranças da oposição que vêm defendendo em discursos
públicos a pauta da anistia. Em discurso na Avenida
Paulista, no mês de abril, ele lembrou nossa “tradição de pacificação” por
meio do perdão:
— Na História do Brasil, sempre tivemos anistia. Foi assim no período colonial. Foi assim no período regencial. Foi assim no Segundo Império. Foi assim no início da República. Vocês sabiam que Prudente de Morais deu anistia para aquelas pessoas que se revoltaram nos primeiros anos da República? Vocês sabiam que Vargas deu anistia para quem participou da Intentona Comunista? Vocês sabiam que Juscelino Kubitschek deu anistia para as pessoas que se revoltaram em 1955? E a Lei da Anistia em 1979? Por que não dar anistia agora?
Como os historiadores vêm lembrando, porém,
as inúmeras anistias dadas a golpistas na História do Brasil não levaram à
pacificação e à acomodação democrática, mas a novas tentativas de golpe.
Em entrevista
ao GLOBO, o historiador Carlos Fico lembrou o ineditismo histórico da
condenação de Bolsonaro à luz de 136 anos de tentativas de golpes de Estado que
relata em seu novo livro:
— Em todos os episódios deste livro, não
houve punição devida para militares golpistas. Vou repetir: nunca houve, em
mais de uma dezena de tentativas de tomada de poder pela força. Não é figura de
linguagem. São 136 anos e nunca aconteceu. Quando se cogitou alguma punição
menor, em geral disciplinar, houve anistia. Sempre. O fato de agora existir um
inquérito conduzido pela polícia adequada, a Federal, de a Procuradoria-Geral
da República ter feito a denúncia ao STF,
que aceitou essas pessoas, inclusive os militares, como réus, e elas estão
começando a ir a julgamento em contexto de normalidade democrática, é
absolutamente inédito. Se houver condenação, será ainda mais inédito. E
ineditíssimo se não houver anistia.
Em todos os episódios do passado brasileiro,
o perdão foi vendido como pacificação, mas transformou-se em impunidade. A
maior parte das anistias não foi concedida por ingenuidade, mas porque quem
estava no poder sentia que uma condenação dura não encontraria respaldo nas
Forças Armadas e prolongaria ainda mais a instabilidade política. Não é o que
vivemos agora. Temos toda a condição de punir os golpistas em relativa
estabilidade democrática.
Porém talvez seja o caso de devolver à
oposição a demanda por pacificação. O país está muito dividido e se
beneficiaria de uma pacificação de verdade. O que a oposição está disposta a
oferecer para apaziguar o país? Nos processos históricos de anistias que
funcionaram como pacificação, ambas as partes fizeram concessões.
Na Comissão da Verdade e Reconciliação
da África
do Sul, a anistia para os crimes cometidos durante o apartheid foi
concedida sob a condição de que os responsáveis confessassem e revelassem os
fatos relevantes. Os violadores preservaram sua liberdade, mas enfrentaram
escrutínio social, constrangimento público e perda de prestígio. As vítimas
abriram mão da justiça penal plena, mas conquistaram visibilidade e memória
histórica.
Durante os Pactos de Moncloa, no contexto da
transição democrática depois da morte de Francisco Franco na Espanha, concessões
mútuas também foram feitas. A esquerda aceitou a monarquia, apoiou uma lei de
anistia e moderou suas demandas econômicas e sociais, enquanto setores da
direita e do franquismo aceitaram eleições livres, legalizaram partidos antes
proibidos — incluindo o Partido Comunista —, reconheceram liberdades civis e
aceitaram reformas institucionais moderadas.
O processo que levou à condenação de
Bolsonaro não foi isento de falhas. A punição imposta àqueles que apenas
invadiram as sedes dos três Poderes, sem cometer atos de violência, foi
excessivamente severa. Certas medidas que restringiram a liberdade de expressão
durante esse período carecem de plena justificativa legal. Além disso, algumas
das acusações a Bolsonaro — principalmente as que o ligam ao 8 de Janeiro e ao
plano Punhal Verde e Amarelo — não estão baseadas em provas robustas. Talvez um
movimento de reconhecimento e revisão desses problemas pudesse ser um ponto de
partida, desde que a tentativa de Bolsonaro de intervir militarmente no TSE depois
da eleição permanecesse devidamente punida.
Mas uma concessão desse tipo precisaria de
contrapartida dos bolsonaristas. Eles estariam dispostos a reconhecer a
tentativa de golpe, a aceitar a punição para Bolsonaro e generais e a oferecer
algum tipo de garantia de que, de agora em diante, passarão a reconhecer
resultados eleitorais? Se não houver disposição para isso, a conversa de pacificação
é apenas distração cínica e disfarce para a histórica impunidade ao golpismo.
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