Correio Braziliense
O termo “narcoterrorista”
desloca o crime do âmbito penal para campo da segurança nacional. É importado
da doutrina norte-americana da “narcoguerra”. usada na Colômbia e no
México para o emprego das Forças Armadas
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio
Castro, rompeu de forma explícita com os paradigmas de segurança pública
estabelecidos pela Constituição de 1988. Ao comentar a Operação Contenção,
deflagrada no Complexo do Alemão e da Penha — a mais letal da história do
estado, com 121 mortos —, Castro sintetizou os resultados do conceito de
narcoterrorismo: “Temos muita tranquilidade de defendermos tudo que fizemos
ontem. Queria me solidarizar com as famílias dos quatro guerreiros que deram a
vida para salvar a população. De vítima, ontem, lá, só tivemos esses
policiais.”
A frase é mais que uma defesa corporativa. Ao tratar os mortos como “narcoterroristas”, Castro inaugura no Brasil uma retórica que substitui a segurança pública pela lógica da guerra interna. Em nome da “defesa da população”, o Estado reivindica o poder de decidir quais vidas são protegidas e quais podem ser eliminadas. A operação de “cerco e aniquilamento”, do ponto de vista militar, foi bem-sucedida. Mas não desarticula o tráfico de drogas nem recupera o território, porque a violência volta à “normalidade” e, geralmente, as milícias ocupam o espaço dos traficantes no controle da economia informal.
O uso do termo “narcoterrorista” desloca o
problema do crime do âmbito penal para campo da segurança nacional. É uma
palavra importada da doutrina norte-americana da “narcoguerra”, usada na
Colômbia e no México para justificar o emprego das Forças Armadas e a suspensão
de garantias legais. Quando Castro adota esse enquadramento, ele rompe a
fronteira entre direito e exceção. A favela deixa de ser território civil e
passa a ser tratada como teatro de operações militares. A consequência imediata
é a militarização ampliada da política de segurança, legitimando mortes em
massa e esvaziando o controle judicial.
O conceito de “narcoterrorismo” não existe no
ordenamento jurídico brasileiro. Seu uso político é uma manobra simbólica, que
transforma o criminoso em inimigo absoluto e o Estado em autoridade soberana
sobre a vida e a morte. Obviamente, é uma ruptura de acordo com o ideário da
extrema-direita brasileira, que Cláudio Castro (PL) representa. Trata-se, como
aponta o sociólogo Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha, professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de uma forma de necropolítica:
“O governo da morte como instrumento de poder”.
Segundo Bocayuva, conceitualmente, a
necropolítica é o regime em que “o medo e a crueldade se tornam dispositivos de
governo”. No caso do Rio, o “narcoterrorismo” fornece a gramática perfeita para
que o governo adote a violência extrema nos confrontos com os traficantes, num
contexto de guerra aberta na qual não há “suspeitos” nem “cidadãos em conflito
com a lei”: são inimigos mesmo, que precisam ser fisicamente eliminados, em
confrontos diretos e, muitas vezes, execuções sumárias. Com amplo apoio
popular, é uma forma de combate que elimina qualquer possibilidade de direito.
Cartografia da morte
O balanço da Defensoria Pública do Rio de
Janeiro não deixa dúvida do êxito da operação, do ponto de vista da letalidade:
117 civis mortos para quatro agentes do Estado. Para o governador, só há quatro
vítimas — os policiais. As outras mortes são tratadas como estatísticas
colaterais, sem direitos a serem preservados. É a tradução literal da
necropolítica: o Estado não apenas mata, mas escolhe quem merece ser chorado.
Bocayuva chama isso de “cartografia da morte”
— uma geografia social em que o território periférico e o corpo negro são
administrados como zonas de exceção. A militarização urbana, a naturalização da
crueldade e a ausência de políticas de memória e reparação formam o tripé desse
poder necropolítico.
Enquanto Castro exibia orgulho, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva reagiu com perplexidade e indignação. Em viagem
oficial ao Sudeste Asiático, foi informado da operação apenas ao retornar ao
Brasil. Reuniu-se de emergência com seus ministros, “estarrecido” com o número
de mortos e com o fato de o governo federal não ter sido avisado. O ministro da
Justiça, Ricardo Lewandowski, foi enviado ao Rio para acompanhar a crise e
cobrar explicações.
O contraste entre o discurso de Castro e a
reação de Lula simboliza duas concepções opostas de Estado: uma que se ancora
na lógica da exceção, outra na Constituição de 1988. Quando o governador diz
“ou soma no combate à criminalidade ou suma”, ele não apenas desafia o governo
federal — nega a própria ideia de política como espaço de mediação,
substituindo o diálogo pela força. Por óbvio, não faz isso por acaso.
Há uma disputa no imaginário da sociedade
pela bandeira de ordem, que o governo federal tenta recuperar com a PEC do
Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e a nova Lei das Facções, que
endurece as penas para os chefões do tráfico, ambas encalhadas na Câmara por
pressão dos governadores de oposição, entre os quais Castro.
Na teoria de Achille Mbembe, autor do
conceito, a necropolítica define o poder soberano como aquele que decide “quem
deve morrer e quem pode viver”. No Rio, Cláudio Castro assumiu essa
prerrogativa de modo explícito, revestido de legitimidade moral e linguagem
popular. O “narcoterrorista” é um ser fora da lei, cuja eliminação é um ato
heroico e patriótico, onde as favelas e comunidades periféricas se confundem
com o campo de batalha. É o mesmo mecanismo simbólico que sustentou a guerra
suja na Colômbia e a guerra perdida no México.

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