quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Rio de sangue, dor e conflito, por Míriam Leitão

O Globo

Combater as facções criminosas exige inteligência, planejamento e ação organizada. O que vimos, até aqui, foi a repetição de erros do passado

O Rio amanheceu ontem contando os mortos e o governador Cláudio Castro se dizendo orgulhoso e definindo como um sucesso a operação policial mais letal do Brasil. Pior do que a sua distorção de análise, é o fato de que o Supremo Tribunal Federal, em voto único, em abril, mandou o Rio fazer exatamente o contrário, ter um plano de redução da letalidade das operações. Há ordens do STF não cumpridas na ação no Complexo da Penha. Desde o começo da crise, o governador tem entrado em seguidas contradições, e se corrige dizendo que fizeram má leitura das suas declarações. No fim do dia, ontem, deu uma entrevista ao lado do ministro da Justiça, reduzindo a tensão da crise federativa.

Durante os últimos dois dias, Cláudio Castro disse diversas vezes que não queria a politização dos eventos. Mas politizou todo o tempo. Ontem chegou a dizer que "quem quiser somar com Rio de Janeiro neste momento é bem-vindo. Os outros que querem fazer confusão e politicagem, sumam. Ou soma ou suma”. Isso foi logo depois de uma reunião online com os “governadores de direita”. Disse que nesta reunião não se falou da PEC da Segurança. Deveria ter falado. Afinal, a PEC cria os canais de cooperação entre os entes federados e a União através do SUSP, o Sistema Único de Segurança Pública. O governador do Rio sempre criticou a proposta, alegando que iria perder autonomia. Quando o número de mortos começou a subir, no entanto, Castro reclamou a falta de ajuda federal.

Para se ter uma medida da mudança que houve ao longo da crise, na terça, o governador chamou a ADPF 635 de “maldita”. Ontem à noite, depois da reunião com o ministro Ricardo Lewandowski ,disse que a ADPF seria o “farol" das ações. Se não fosse, seria descumprimento de ordem judicial. O STF, em abril, determinou que o Rio reduza a letalidade, elabore um plano de recuperação territorial, e instale câmeras corporais. Para a Polícia Federal a ordem foi abrir um inquérito para apurar indícios de crimes de repercussão interestadual ou internacional. E a PGR teve que criar um grupo de trabalho para acompanhar o cumprimento da sentença.

O governo estadual agiu nas últimas 48 horas como se não houvesse essa sentença. Tanto que a ação provocou um aumento da letalidade e não sua diminuição, como havia determinado o Supremo. O governador disse algumas vezes que “sozinhos não temos como vencer essa guerra”. Mas não pediu ajuda. Inicialmente falou que tinha pedido uns blindados. De fato, em janeiro pediu blindados, soldados para operá-los e alguns mecânicos. Como se fosse possível fazer algo assim tão informal em uma questão séria como o uso de recursos das Forças Armadas.

O Ministério Público, na terça-feira, pediu informações pormenorizadas sobre a obediência às ordens do STF pelos responsáveis pela operação. “Estamos tentando tornar os fatos mais nítidos antes de outras providências”, me informou uma fonte.

— Ontem foi o início de um grande processo — disse o governador, querendo dar à brutalidade da ação policial que produziu uma carnificina, inclusive com mortes de agentes de segurança, ares de começo de uma nova era.

O senador Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso Nacional, que entrevistei ontem na Globonews, disse que é legítimo que os governadores de oposição discordem da PEC da Segurança Pública, mas que deveriam, então, ter apresentado uma alternativa.

–Se a PEC tivesse sido aprovada nós teríamos o Sistema Único de Segurança Pública, já teríamos uma cooperação, teríamos uma Polícia Viária Federal. A pergunta a ser feita é: qual é a melhor forma de enfrentar o crime organizado? Com inteligência, estratégia, como a Polícia Federal fez na Carbono Oculto ou ocupando os morros sem nenhum critério?

O Brasil vive a tragédia do crescimento das facções criminosas e precisa encarar o problema com inteligência, planejamento e ação organizada. No Rio é muito evidente a ocupação do território, mas hoje as facções se espalham pelo país todo. São organizações criminosas interestaduais e transnacionais. Só há uma forma de enfrentá-las, que é a união das forças do Estado. O que se viu nas últimas horas foi a repetição dos erros do passado, em operações nas quais a polícia entra atirando, os criminosos respondem atirando, muitos morrem, a população fica refém. No fim do dia, na entrevista conjunta do ministro e do governador surgiu a esperança de uma cooperação federativa.

 

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