Acabo de ler dois livros que motivaram este artigo. O primeiro foi “O fantasma da revolução brasileira”, de Marcelo Ridenti. Gosto dos livros de Ridenti porque são honestos, objetivos, sem firulas. Lembro de um livro que li, tempos atrás, onde descrevia os autores clássicos da sociologia, relacionando-os com as práticas políticas. Um trabalho típico de educador, honesto e solidário. Neste livro que acabo de ler, Ridenti retoma, ao final, uma expressão de Giannotti para descrever a esquerda brasileira que entrou na luta armada: “permanência representativa”. Seria algo como a ilusão da perenidade da representação dos partidos e organizações de esquerda em relação aos desejos das classes trabalhadoras.
O autor vai mais além e retoma o impacto psicológico da clandestinidade, que impele à uma profunda solidão e à ida sem volta, já que a clandestinidade transforma o militante em profissional: está totalmente submetido à organização, que o sustenta, inclusive materialmente. Imagine o impacto psicológico desta prisão que aparta o militante do corpo social, da dinâmica tortuosa da vida política pública. O militante clandestino visualiza uma trajetória retilínea e o mundo lá fora dando voltas e trançando movimentos erráticos. O pior dos mundos para quem quer ser a expressão dos que estão lá fora.
O outro livro foi “O Poder do Povo”, de Yves Sintomer. O autor trabalha sobre uma tese das mais polêmicas: o sorteio como prática democrática. Retoma Aristóteles para quem as funções públicas que não requeriam experiência específica deveriam ser sorteadas, como ocorre na montagem do corpo de jurados num julgamento público. O autor descreve a experiência ateniense, de Veneza e Florença. A descrição da experiência do Grande Conselho de Veneza chega a causar vertigem no leitor: o conselheiro mais jovem saía à rua e retornava com a primeira criança que encontrasse, que retirava, por sua vez, bolas de madeira (denominadas “balote”) de uma urna. Daí eram sorteados 30 eleitos que se reduziam a nove após novo sorteio.
O outro livro foi “O Poder do Povo”, de Yves Sintomer. O autor trabalha sobre uma tese das mais polêmicas: o sorteio como prática democrática. Retoma Aristóteles para quem as funções públicas que não requeriam experiência específica deveriam ser sorteadas, como ocorre na montagem do corpo de jurados num julgamento público. O autor descreve a experiência ateniense, de Veneza e Florença. A descrição da experiência do Grande Conselho de Veneza chega a causar vertigem no leitor: o conselheiro mais jovem saía à rua e retornava com a primeira criança que encontrasse, que retirava, por sua vez, bolas de madeira (denominadas “balote”) de uma urna. Daí eram sorteados 30 eleitos que se reduziam a nove após novo sorteio.
Esses nove eleitos elegiam, então, 40 conselheiros por maioria qualificada, que eram reduzidos a 12, por sorteio. Esta rotina se repetia por nove turnos, até a escolha final do “doge” (o comandante, o magistrado supremo de Veneza). A candidata socialista da França em 2007, Ségolène Royal, sugeriu recentemente que se criasse um júri de cidadãos sorteados para avaliarem os governos. Em 2006, Marousi (cidade próxima de Atenas) evocou a experiência do sorteio para que 131 cidadãos definissem o candidato socialista à prefeitura.
Mas, o que teria a leitura dos dois livros em comum? A noção que a democracia vai muito além da democracia partidária, onde os eleitos possuem uma grande autonomia para decidir em nome do voto. A democracia partidária parece se transformar num simulacro de espaço público (ou representação do espaço público). Trata-se mais de um arranjo privado, entre lideranças – quase sempre notáveis – de agrupamentos infrapartidários. Se representação é equivalência, onde estaria o par do líder partidário, que afinal define os candidatos que supostamente
representarão os cidadãos. Onde nos perdemos para chegar a tal vertigem democrática?
Talvez, no momento em que a sociedade se fragmentou e acelerou os processos de mudança cultural, de comunicação, fragmentou os padrões de consumo e escolha ou construiu a “sociedade reflexiva”, as estruturas formais de representação política caducaram e se aproximaram da profissionalização política não-representativa do período de clandestinidade dos anos de chumbo.
Duas situações alertam para tal descompasso. O primeiro, o fenômeno de agorafobia que acomete a Presidente Dilma Rousseff. A agorafobia é o medo do medo ou uma antecipação do possível medo de situações não controladas. Dilma parece fazer uma ponte com seu passado de clandestinidade ao se abdicar do papel de liderança midiática. Dilma não é mais uma persona, mas uma instituição, o cargo mais alto da República Presidencialista de nosso país. Como ápice de todo um sistema político, é expressão pública da moral desta estrutura política. A Presidência da República é uma investidura. revestida de uma aura cerimonial, uma distinção, uma honra que envolve o cargo oficial a partir do qual se estabelece a lógica política republicana.
Mas o que parece suceder à Dilma Rousseff é a dificuldade de se relacionar com este espaço público formal, cuja realidade não se confunde com as suas escolhas privadas, com a lógica de um escritório empresarial. Ser Presidente da República não é, necessariamente, ser como se é de fato, mas se submeter à uma lógica específica, nacional e coletiva, forjada na ética da responsabilidade política.
Dilma não parece muito à vontade em não ser o que é. Pior: não parece à vontade em assumir a investidura que o voto lhe conferiu.
Mas o pior é que o outro lado da moeda, a oposição, também parece acometida do mesmo problema psicológico. A oposição ao governo federal se enredou na “Síndrome da Tribuna Parlamentar”. Acredita piamente que o parlamento representa, de fato, a diversidade nacional.
Mas, o que teria a leitura dos dois livros em comum? A noção que a democracia vai muito além da democracia partidária, onde os eleitos possuem uma grande autonomia para decidir em nome do voto. A democracia partidária parece se transformar num simulacro de espaço público (ou representação do espaço público). Trata-se mais de um arranjo privado, entre lideranças – quase sempre notáveis – de agrupamentos infrapartidários. Se representação é equivalência, onde estaria o par do líder partidário, que afinal define os candidatos que supostamente
representarão os cidadãos. Onde nos perdemos para chegar a tal vertigem democrática?
Talvez, no momento em que a sociedade se fragmentou e acelerou os processos de mudança cultural, de comunicação, fragmentou os padrões de consumo e escolha ou construiu a “sociedade reflexiva”, as estruturas formais de representação política caducaram e se aproximaram da profissionalização política não-representativa do período de clandestinidade dos anos de chumbo.
Duas situações alertam para tal descompasso. O primeiro, o fenômeno de agorafobia que acomete a Presidente Dilma Rousseff. A agorafobia é o medo do medo ou uma antecipação do possível medo de situações não controladas. Dilma parece fazer uma ponte com seu passado de clandestinidade ao se abdicar do papel de liderança midiática. Dilma não é mais uma persona, mas uma instituição, o cargo mais alto da República Presidencialista de nosso país. Como ápice de todo um sistema político, é expressão pública da moral desta estrutura política. A Presidência da República é uma investidura. revestida de uma aura cerimonial, uma distinção, uma honra que envolve o cargo oficial a partir do qual se estabelece a lógica política republicana.
Mas o que parece suceder à Dilma Rousseff é a dificuldade de se relacionar com este espaço público formal, cuja realidade não se confunde com as suas escolhas privadas, com a lógica de um escritório empresarial. Ser Presidente da República não é, necessariamente, ser como se é de fato, mas se submeter à uma lógica específica, nacional e coletiva, forjada na ética da responsabilidade política.
Dilma não parece muito à vontade em não ser o que é. Pior: não parece à vontade em assumir a investidura que o voto lhe conferiu.
Mas o pior é que o outro lado da moeda, a oposição, também parece acometida do mesmo problema psicológico. A oposição ao governo federal se enredou na “Síndrome da Tribuna Parlamentar”. Acredita piamente que o parlamento representa, de fato, a diversidade nacional.
Mas todos brasileiros, como demonstram tantas pesquisas, acreditam que o parlamento representa a si. Aliás, algo que ex-governadores, hoje parlamentares, afirmam e reafirmam. Blairo Maggi (PR-MT), Jorge Viana (PT-AC), Eduardo Braga (PMDB-AM) e tantos outros ex-governadores, hoje senadores, estranham a lentidão e a falta de “senso de praticidade” do parlamento (cf. Folha de S.Paulo, 8 de março de 2011, p. A5).
A oposição perdeu, enfim, sua capacidade de se comunicar e, enfim, se fazer representante dos cidadãos.
O que faz de nossa democracia formal um diálogo entre iguais, uma espécie de oligarquia formalizada pelo ato simbólico (ou simulacro) do voto.
A não-representação do sistema político formal brasileiro gera algo próximo da vertigem da clandestinidade. Sendo que naquele momento, a vertigem se fazia sentir porque havia a ânsia de representação dos que se encontravam marginalizados ou submetidos ao regime militar. Nos dias atuais, o ritual das eleições impede qualquer sentimento de angústia. Talvez, apenas nos meses que antecedem às eleições, mas não no ato da representação efetiva.
Se a análise está correta, Sintomer e Ségolène podem ter dado a pista, sem o saber, para nossa reforma política. Contudo, para que desse certo, o fórum de formuladores da proposta de reforma política deveria ser sorteado entre cidadãos. Afinal, haveria um vício de origem se os atuais parlamentares decidissem sobre a sua real representatividade.
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva.com.br) e membro do Fórum Brasil do Orçamento.Autor de “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais á Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” (Editora Contraponto). Blog: rudaricci.blogspot.com. E-mail: ruda@inet.com.br .
A oposição perdeu, enfim, sua capacidade de se comunicar e, enfim, se fazer representante dos cidadãos.
O que faz de nossa democracia formal um diálogo entre iguais, uma espécie de oligarquia formalizada pelo ato simbólico (ou simulacro) do voto.
A não-representação do sistema político formal brasileiro gera algo próximo da vertigem da clandestinidade. Sendo que naquele momento, a vertigem se fazia sentir porque havia a ânsia de representação dos que se encontravam marginalizados ou submetidos ao regime militar. Nos dias atuais, o ritual das eleições impede qualquer sentimento de angústia. Talvez, apenas nos meses que antecedem às eleições, mas não no ato da representação efetiva.
Se a análise está correta, Sintomer e Ségolène podem ter dado a pista, sem o saber, para nossa reforma política. Contudo, para que desse certo, o fórum de formuladores da proposta de reforma política deveria ser sorteado entre cidadãos. Afinal, haveria um vício de origem se os atuais parlamentares decidissem sobre a sua real representatividade.
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva.com.br) e membro do Fórum Brasil do Orçamento.Autor de “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais á Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” (Editora Contraponto). Blog: rudaricci.blogspot.com. E-mail: ruda@inet.com.br .
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