O Estado de S. Paulo
Que o conhecimento oferecido possa contribuir decisivamente para aprofundar o debate sobre o estado atual e o futuro do Brasil rural como um todo
Consolida-se no presente século uma percepção
minimalista sobre “o rural”, compartilhada pela maioria dos brasileiros. Quase
se tornou sinônimo, tão somente, de tratores, colhedeiras, drones e outras
tecnologias definidas como modernas e avançadas. E desaparecem outras dimensões
sobre a vida social em seus múltiplos aspectos. É uma errônea generalização,
pois a história e as facetas mais abrangentes e reais do Brasil rural têm sido
esmaecidas na memória dos cidadãos.
É provável que alguns processos principais tenham contribuído para esse “esquecimento do rural”. Primeiramente, lembrar que a maior parte das migrações do campo para a cidade ocorreram entre as décadas de 1950 e 1980 e, dessa forma, as novas e urbanas gerações sabem algo sobre a vida rural por meio, sobretudo, das lembranças de seus familiares mais idosos. Depois, ressaltar a influência de anos de propaganda sobre o “agro é pop”, fato que certamente contribui para enraizar um imaginário social relativamente distorcido.
Sobre tais aspectos, contudo, há um fato
provado, mas raramente discutido. Qual seja, afirmar que a vida social, em
praticamente todos os rincões do nosso vasto interior, sempre foi extremamente
precária. Inexistem serviços de saúde adequados (ou nenhum), as estradas são
ruins e promovem o isolamento e mesmo as antigas escolas rurais quase não
existem mais. Até as manifestações de violência aumentaram. Sob escassa
interação social, com famílias que diminuíram dramaticamente de tamanho, alguma
ideia mais virtuosa de sociedade, para os moradores do campo, se associa
inevitavelmente às cidades.
Nosso desconhecimento sobre o Brasil rural é
espelhado sob muitos aspectos. Um deles é a ausência de uma literatura mais
completa sobre essa vastíssima parte do País que se estende além do urbano. Nem
existe um livro que tenha analisado consistentemente a história do rural, mesmo
que apenas no Brasil contemporâneo. As análises são localizadas e regionais ou
dirigidas apenas a setores produtivos específicos.
Não obstante a recente e vigorosa expansão da
produção de alimentos, continuamos desconhecendo as profundas variações
existentes que caracterizam o rural e seus setores produtivos. Quantos
brasileiros saberiam, como curiosa ilustração, que a madeira é o produto de
origem agrícola mais consumido no mundo, correspondendo a aproximadas 700
gramas por dia e por pessoa, o dobro do consumo médio do milho, o segundo
produto mais consumido? Sendo o subsetor de florestas plantadas, no Brasil, um
dos mais espetaculares? É uma das inúmeras informações e análises contidas em
livro que está sendo lançado (ver ao final), o qual, pela primeira vez,
interpreta as “histórias rurais” da maioria dos Estados brasileiros.
Sem ter a chance de comentar mais
detalhadamente, pelo menos três aspectos gerais podem ser citados, extraídos do
novo livro. Primeiramente, o papel histórico da pecuária extensiva e de baixa
produtividade como o “vetor inicial de captura” da terra no passado, depois
transformada em setor fornecedor de proteína animal para um número crescente de
países. Em segundo lugar, a partir dos anos 90, o veloz espalhamento de uma
“cultura de modernização” que vem tomando conta do interior, incentivado
inicialmente pela expansão da soja, mas em anos recentes contaminando todo o
campo e estimulando a formação de um importante sistema agroalimentar.
Finalmente, um terceiro aspecto hoje típico nacionalmente, que é o esvaziamento
demográfico, sobretudo, de jovens.
São processos e tendências que reforçam as
leituras otimistas, em especial pelos ângulos produtivos e tecnológicos. Mas
também aprofundam preocupações sobre o destino próximo da agropecuária, em
especial pelos ângulos social e ambiental. Pois a riqueza gerada, em proporções
impressionantes, se concentra cada vez mais, desenvolvendo assimetrias que
afugentam do campo as famílias rurais médias ou mais pobres.
Finalmente, o foco ambiental talvez seja a
dimensão mais assustadora. A expansão das atividades do setor em algumas
regiões, sobretudo na parte norte do Cerrado, adentrando o bioma amazônico,
poderá representar, em futuro próximo, um quase suicídio coletivo. Vai
alterando irremediavelmente o regime de chuvas ou os dramáticos eventos
naturais que vem se repetindo com crescente frequência.
Ficaram assim para trás os ciclos agrícolas
regionais, nascendo um período inédito, porque agora nacional. Portanto, é
preciso interpretar o todo, pois seria pelo menos insuficiente repetir os
modelos que, no passado, ou foram regionais e estaduais, ou foram setoriais,
dedicando-se exclusivamente a algum tema ou produto em particular. É a
expectativa dos 61 pesquisadores envolvidos nos 26 capítulos do livro, que o
conhecimento oferecido possa contribuir decisivamente para aprofundar o debate
sobre o estado atual e o futuro da agropecuária brasileira e do Brasil rural
como um todo.
Dinâmica econômica e o mundo do trabalho no
Brasil rural, organizado por Nicole Rennó Castro, Junior Ruiz Garcia e Zander
Navarro. São Paulo: Editora Baraúna, 770 páginas, 2025. ISBN:
978-85-437-1014-3. Disponível no site da Embrapa. •
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