Julgamento de Bolsonaro reflete força da democracia
O Globo
Pela primeira vez em 135 anos de República,
acusados de golpe de Estado estarão no banco dos réus
O julgamento que começa hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) não tem precedente. Pela primeira vez em 135 anos de República, um ex-presidente e militares das mais altas patentes responderão por tentativa de golpe de Estado. A conjuntura global torna o fato ainda mais notável. Os Estados Unidos, outrora bastião dos ideais republicanos e democráticos, têm, sob Donald Trump, adotado rumo preocupante na direção do autoritarismo. A Primeira Turma do STF começará a julgar Jair Bolsonaro e os demais implicados na intentona sob os olhos do planeta e sob pressão do governo americano. Em tal contexto, torna-se essencial a mensagem que o Supremo transmitirá. É preciso que ela reflita sobriedade, o exame técnico das provas, o escrutínio aprofundado das acusações e, acima de tudo, justiça.
Bolsonaro, os ex-ministros Braga Netto,
Augusto Heleno, Anderson Torres e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-comandante da
Marinha Almir Garnier, o deputado federal Alexandre Ramagem e o ex-ajudante de
ordens da Presidência Mauro Cid são acusados de tentar repetir uma prática
recorrente na História brasileira: a ruptura institucional. Deodoro da Fonseca,
primeiro presidente republicano, renunciou depois de tentativa fracassada de
golpe. Floriano Peixoto, o vice, assumiu, não convocou novas eleições como
previa a Constituição e se manteve de forma ilegítima no poder até 1894. Em
1930, Getúlio Vargas tomou o poder à força. Sete anos depois, deu o golpe do
Estado Novo. Nos anos 1950, Juscelino Kubitschek foi alvo de duas rebeliões
militares. Na década seguinte, ministros militares vetaram a posse do vice João
Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, um golpe deu início à
ditadura militar que se prolongou por mais de duas décadas. Ao longo de toda a
História da República, nenhum protagonista dessas rupturas institucionais ou
tentativas foi parar no banco dos réus. Neste 2 de setembro de 2025, o Brasil
finalmente quebra essa tradição vexatória.
O fracasso da tentativa de golpe de Bolsonaro
e companhia, que culminou na violência contra as sedes dos três Poderes no 8 de
Janeiro, é sem dúvida sinal de maturidade das instituições brasileiras. Foi
decisiva, para isso, a ação enérgica do STF. Apesar de eventuais erros e
percalços na condução dos processos, o Supremo fez uso dos poderes
estabelecidos na Constituição de 1988 para garantir o bom andamento das
investigações da Polícia Federal (PF) e para dar andamento célere às ações
judiciais.
A defesa da democracia, contudo, tem origem
mais profunda e base mais sólida. A maioria esmagadora da opinião pública não
caiu no conto do autoritarismo. Diferentes setores da sociedade rechaçaram
categoricamente a ruptura institucional — do empresariado a expoentes da
política de vários matizes, sem esquecer o papel crucial da imprensa
profissional. As cúpulas do Exército e da Aeronáutica não apenas recusaram as
propostas de golpe, como depois relataram em testemunho a trama golpista. Dos
chefes das Forças Armadas sob Bolsonaro, apenas o da Marinha é réu. Não faltou,
também, pressão externa em defesa da ordem democrática, em particular do
governo americano pré-Trump.
O julgamento deverá durar duas semanas. Será
o tempo necessário para que os cinco juízes que integram a Primeira Turma
analisem os argumentos de acusação e defesa e para que cada um apresente seu
voto de acordo com a lei e as próprias convicções. Formalmente, Bolsonaro e
seus asseclas são acusados dos crimes de tentativa de abolição violenta do
Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, participação em organização
criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Cabe
aos ministros, e apenas a eles, decidir se os fatos apurados na investigação
qualificam cada uma dessas condutas e, em caso afirmativo, estabelecer a pena
adequada, levando em conta agravantes (como a repetição) ou atenuantes (como
idade e estado de saúde).
Independentemente da decisão jurídica, todos os brasileiros sabem o que aconteceu. Com controle sobre o aparato estatal, Bolsonaro usou de sua autoridade para buscar ficar no poder depois de perder para Luiz Inácio Lula da Silva as eleições de 2022. Quando ainda ocupava o Palácio do Planalto, atacou, sem jamais comprovar, a integridade das urnas eletrônicas, propôs repetidamente interpretações descabidas da Constituição, coordenou a edição de minutas ilegais para justificar o injustificável e convocou várias reuniões para convencer ministros e chefes militares a participar da intentona. Numa das versões descobertas pela investigação da PF, o plano previa até o assassinato de autoridades. Não faltou empenho para que houvesse a ruptura. Ela só deu errado em razão do compromisso do povo e das instituições com os valores republicanos. O período mais longo de vida democrática no Brasil sobreviveu à grave tentativa de golpe de Estado, perpetrada por ninguém menos que o então presidente. Apenas por isso, mesmo antes do veredito, já é possível afirmar que o Brasil venceu.
Gestão Lula terminará sem obter superávit
fiscal
Valor Econômico
Dívida bruta cresceu quase 1% no mês de julho
e atingiu 77,63% do PIB, expansão de quase 6 pontos percentuais do PIB em dois
anos e meio da administração Lula
O projeto de lei orçamentária anual (PLOA)
para 2026 enviado ao Congresso indica que, como já se esperava, o governo Lula
terminará seu mandato sem alcançar um resultado positivo nas contas públicas. A
meta fiscal do ano que vem, ano eleitoral, é de superávit de R$ 34,3 bilhões
(0,25% do PIB), com um piso aceito de equilíbrio entre receitas e despesas, ou
déficit zero. Serão abatidos R$ 57,8 bilhões em precatórios, logo o déficit
real será de pelo menos R$ 23,3 bilhões, se todas as premissas para arrecadação
e receitas extras se confirmarem. Os parâmetros, como sempre, são otimistas e
contam com recursos de medidas que ainda dependem da aprovação do Congresso.
O crescimento da economia projetado é de
2,44%, mais elevado que as estimativas de analistas e consultorias privados. O
boletim Focus de ontem indica mediana de expansão de 1,87%. A inflação segue a
projeção do BC, de 3,6%, enquanto o Focus prevê 4,31%. Na comparação com o PLOA
de 2025, aguarda-se um avanço do PIB ligeiramente menor (do que 2,64% no ano corrente),
com uma taxa de juros bem maior, o que não faz sentido. A taxa de acerto das
projeções do governo e das de analistas privados é igualmente baixa e não serve
de norte. O que definirá o cumprimento da meta fiscal será a evolução das
despesas e das receitas. Neste último caso, há novas manifestações de otimismo:
a previsão é de ganhos extras de R$ 98,7 bilhões, mesmo assim para fechar o ano
sem resultado positivo.
Para obter todos esses recursos, o governo
conta com que o Congresso aprove o aumento da arrecadação sobre fintechs,
tributação de aplicações financeiras antes isentas (como LCI, LCA) em 5%,
aumento dos juros sobre capital próprio e mais imposto sobre apostas, o que
traria aos cofres públicos R$ 20,9 bilhões. Sem apontar quais subsídios ou isenções
tributárias serão escolhidos, haverá um corte linear de 10%, com receita extra
estimada em R$ 19,76 bilhões em projeto ainda não detalhado. A Receita prevê
gastos tributários (renúncia de arrecadação) de R$ 612 bilhões em 2026. O
governo não cortará as isenções importantes ou constitucionais, como as da
cesta básica, Simples e Zona Franca de Manaus. É a primeira vez que isso
ocorrerá de fato. A obrigação de fazê-lo foi aprovada no governo Bolsonaro e
tem sido ignorada até hoje.
Além disso, o governo espera obter R$ 27
bilhões com transações tributárias, acordos feitos com devedores e perdedores
em ações contra a União para quitação de dívidas, e outros R$ 31 bilhões com
novos leilões do petróleo. Entre eles, está a antecipação de receitas com a venda
de petróleo de áreas não exploradas pela União.
O projeto de lei enviado ao Congresso mostra
a constante elevação das despesas obrigatórias no orçamento total, de 92,2%
para 92,4%, e a progressiva compressão das discricionárias. Como é ano
eleitoral, a rubrica de investimentos do novo PAC dará um salto de R$ 60,9
bilhões no orçamento de 2025 para R$ 77,6 bilhões em 2026. O gasto com pessoal
avançará R$ 43,7 bilhões, enquanto as verbas para quase todos os ministérios
crescerá, com exceção dos de Minas e Energia, Transportes e Integração e
Desenvolvimento Regional. Na área social, há redução em Direitos Humanos e
Igualdade Racial. O Bolsa Família, sem reajuste, consumirá R$ 158,6 bilhões,
ante R$ 166,3 bilhões orçados para 2025.
O projeto também mostra a encruzilhada
financeira das contas públicas. Todas as despesas primárias do governo federal,
de R$ 3,1 trilhões, equivalerão ao que será pago com despesas financeiras,
também de R$ 3,1 trilhões. Ao não produzir superávits, a conta de juros, com a
maior Selic desde 2006, cresce sem parar e eleva a dívida bruta. Os últimos
dados do Banco Central, por exemplo, indicam que nos 12 meses encerrados em
julho foram pagos de encargos financeiros R$ 941,2 bilhões (7,64% do PIB). O
resultado nominal, que inclui os juros, foi negativo em R$ 968,5 bilhões, ou
7,86% do PIB, um dos maiores do mundo.
Como resultado da meta fiscal, modificada
logo antes de sua estreia, que não exigiu um centavo de abatimento dos débitos
ao longo da gestão atual, o endividamento bruto cresceu quase 1% no mês de
julho e atingiu 77,63% do PIB, com expansão de quase 6 pontos percentuais do
PIB em pouco mais de dois anos e meio da administração Lula. A Instituição
Fiscal Independente prevê que ao fim de seu mandato a dívida bruta atinja 82,4%
do PIB. A performance atual é espantosa para uma economia que cresceu pelo
menos 3% nos últimos três anos, o melhor desempenho em uma década.
O projeto de lei orçamentária indica também que o governo continuará se comportando como até aqui, procurando mais receitas que, pelo regime fiscal, lhe permitirão gastar mais no ano em que o presidente Lula tentará se reeleger. Há um encontro marcado com o risco de paralisia de parte da máquina pública em 2027, mas o importante para o Planalto é vencer as eleições, ainda que o custo seja alto. A tarefa indicada pelo governo para 2026 é não deixar a economia esfriar e vencer nas urnas.
Estado de bem-estar social precisa ser mais
eficiente
Folha de S. Paulo
Programas que somam 22,7% do PIB podem obter
resultados melhores com mais foco e racionalização
Ampliação da proteção veio ao preço de um salto na carga tributária. Mesmo assim, permanecem déficits fiscais e a elevada dívida pública
A diminuição da pobreza e da desigualdade é
uma conquista civilizatória do Brasil nas últimas décadas. A criação de uma
rede de proteção social, ainda que tardia e imperfeita, mitigou privações
históricas e promoveu um avanço bem-vindo.
Em 2024, o país atingiu mínimas históricas de
pobreza extrema —6,7%, ante 40% em 1988— e desigualdade (índice de Gini de
0,5). As despesas com programas sociais e serviços públicos custam hoje R$ 2,7
trilhões ao ano, ou 22,7% do PIB —acima
da média da OCDE,
que reúne os países mais desenvolvidos.
A Constituição de
1988 é o principal marco na construção de nosso Estado de bem-estar, com a
criação do SUS,
a universalização da educação com
fontes de financiamento, expansão da cobertura da Previdência
Social e benefícios trabalhistas e assistenciais.
Com o Bolsa Família,
nos anos 2000, tem início uma espécie de programa de renda mínima, que
atualmente absorve cerca de R$ 160 bilhões anuais, atendendo 19,2 milhões de
famílias.
Em um país de profundas disparidades, é
natural a demanda da maioria mais pobre por proteção, que foi respondida de
acordo com o calendário político. Como mostrou reportagem da Folha, programas
foram criados e ampliados em ciclos eleitorais.
Tudo isso veio ao preço de uma carga
tributária que saltou de 23% para 34% do PIB desde os tempos da Constituição.
Mesmo assim, permanecem déficits nas contas fiscais, e o crescimento da dívida
pública é galopante —de 56,3% para 77,6% do PIB em pouco mais de dez anos,
impulsionando a escalada dos juros e sendo por ela impulsionado.
A continuidade dessas tendências é
insustentável. Além da deterioração financeira que pode levar ao colapso de
programas, compromete-se a própria capacidade do Estado de cumprir suas
funções. Relatório do Tesouro Nacional aponta para o risco de travamento da
máquina pública por falta de recursos orçamentários livres para uso em 2027.
A menor eficácia estatal também fica clara
quando se consideram a queda dos investimentos públicos federais (de 0,8% para
0,3% do PIB em 15 anos) e a insuficiência de recursos humanos e técnicos em
órgãos fundamentais como IBGE, Ibama e
CVM.
Diante desse quadro, é preciso elevar a
qualidade e a eficiência dos programas sociais, ao melhorar focalização —o Bolsa
Família piorou nesse aspecto, segundo pesquisadores— e fundir
benefícios redundantes. Iniciativas infrutíferas devem ser encerradas. Não se
pode imaginar que o desenvolvimento vá ser conquistado por meio de expansão
eterna das despesas orçamentárias.
Se o país logrou reduzir a pobreza extrema,
resta superar a estagnação da produtividade e da renda que dura décadas, em boa
parte como consequência de contas públicas em desordem. O Estado deve ser reformado com
fim de privilégios, que alimentam a desigualdade, e boa gestão de
suas atividades-fim.
Alfabetização depende de bons exemplos
municipais
Folha de S. Paulo
Cidades com avaliações próprias tiveram
evolução maior; experiências exitosas deveriam ser replicadas
Prefeituras estão mais próximas das escolas.
Assim, ganha-se agilidade na produção de diagnósticos e em monitoramento de
resultados
Saber ler e escrever é o pilar que sustenta a
vida escolar. Por óbvio, tais capacidades precisam ser tratadas com máxima
atenção pelo poder público, principalmente nos municípios.
No Brasil, são eles os responsáveis por
cuidar da educação infantil
e de grande parte do ensino fundamental —já que os governos estaduais também
ofertam matrículas nessa etapa. As demais unidades federativas devem apoiar as
prefeituras.
Dados do Indicador Criança Alfabetizada
(ICA), do Ministério da Educação, revelam que uma atuação mais focada das
gestões municipais é essencial para alavancar o processo de letramento.
As prefeituras estão mais próximas do
ambiente escolar, de alunos, pais e professores. Assim, ganha-se agilidade na
produção de diagnósticos de aprendizagem e nas avaliações de resultados, que
geram programas específicos de capacitação do corpo docente.
O ICA é o monitoramento anual do Compromisso
Nacional Criança Alfabetizada, programa federal criado em 2023 para
universalizar a alfabetização na idade certa (em torno dos 7 anos) no país.
Em 2023, 55,9% das crianças que concluíram o
segundo ano do ensino fundamental estavam alfabetizadas; em 2024, chegou-se a
59,2% —um pouco abaixo da meta para aquele ano (60%).
As três cidades acima de 500 mil habitantes
que mais evoluíram instituíram avaliações próprias para orientar suas
políticas.
Em Aracaju (SE), a alta entre
2023 e 2024 foi de 17,5%, chegando a 47,2%. Contagem (69,1)% e
Uberlândia (62,6%), em Minas Gerais, superaram a média nacional após
crescimento de 15,3% e 11,7%, respectivamente.
Nelas, são feitas avaliações mensais ou
trimestrais, e os resultados orientam os professores —o Sistema de
Avaliação da Educação Básica (Saeb) do MEC, por
exemplo, é bianual.
O ICA mostra, ainda, que a expansão da
alfabetização não está tão ligada à quantidade de recursos, mas a uma gestão
técnica.
Em São Paulo (SP),
maior metrópole do país, o indicador
foi de 48,3% em 2024, abaixo de cidades bem mais pobres, como Teresina (PI),
com 57,3%, a maranhense São Luís (56,5%),
e Fortaleza (CE),
que, ao atingir 74,8%, lidera o ranking das capitais.
Prefeituras precisam tomar as rédeas das políticas de alfabetização, articuladas com estados e o MEC, e experiências municipais exitosas devem ser replicadas e adaptadas a cada realidade local. Só assim o país conseguirá superar sua taxa vergonhosa de crianças que não sabem ler e escrever na idade em que já deveriam dominar essas ferramentas.
A democracia brasileira venceu
O Estado de S. Paulo
Início do julgamento de Bolsonaro e corréus
no STF é o fim da indulgência com o golpismo que manchou a história republicana
do País e a afirmação da força da Constituição sobre seus inimigos
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia hoje
aquele que pode ser considerado, sem exagero, o julgamento mais importante de
sua história. Estarão no banco dos réus o ex-presidente Jair Bolsonaro,
ex-ministros de Estado e militares de alta patente que compõem o “núcleo
crucial”, como classificou a Procuradoria-Geral da República, de uma tentativa
de golpe com o objetivo de subverter a vontade popular manifestada nas urnas em
2022. É a primeira vez que um ex-presidente e membros de seu primeiro escalão
enfrentam acusações tão graves à luz da Lei de Defesa do Estado Democrático de
Direito – e com real perspectiva de condenação. Oxalá seja a última.
A originalidade do julgamento, no entanto,
não se restringe às figuras diante de seus julgadores. De forma inédita, os
dispositivos legais criados para substituir a famigerada Lei de Segurança
Nacional serão aplicados por um tribunal civil em ação penal que envolve réus
que tiveram grande proeminência política e militar no País. O simbolismo é
inequívoco: a democracia brasileira, tantas vezes golpeada desde 1889,
robusteceu-se a ponto de processar e julgar seus inimigos sem condescendência
e, mais importante, sem recorrer a expedientes violentos. Trata-se de um enorme
salto civilizatório.
É verdade que a condução dos inquéritos dos
atos antidemocráticos e da Ação Penal (AP) 2.668 pelo STF não é isenta de
falhas. A teoria da democracia defensiva, que norteou a resposta institucional
da Corte aos ataques golpistas, por vezes resvalou em abusos, os quais este
jornal não deixou de apontar e reprovar quando era o caso. A força da
democracia reside no respeito à forma do Direito que a sustenta, vale dizer, na
observância ao devido processo legal, mesmo, e sobretudo, quando em julgamento
estão acusados de tramar para destruí-la. Mas, no geral, é de justiça
reconhecer que o STF mais acertou do que errou, agindo com firmeza e
celeridade. Fosse leniente, talvez já não vivêssemos sob a égide da
Constituição de 1988.
Por óbvio que seja, é relevante notar que o
julgamento só ocorre porque o golpe fracassou, fato que, por si só, atesta que
a democracia já venceu seus inimigos, independentemente de seu desfecho. Fosse
bem-sucedida a sedição, o STF não estaria exercendo hoje seu papel de guardião
da ordem democrática, decerto teria sido rebaixado a mero aprisco de chancela
judicial aos desígnios autoritários do sr. Bolsonaro e sua grei. Logo, o
esperneio do ex-presidente pelas medidas cautelares a que foi submetido e pela
eventual condenação faz parte de seu direito de defesa, mas não altera o
principal: golpistas não serão anistiados de antemão, como tantas vezes ocorreu
ao longo destes mais de 200 anos de Brasil independente, em especial militares.
É do mais alto interesse das Forças Armadas, como instituições a serviço do
Estado e do povo brasileiros, apoiar a condenação dos fardados que,
comprovadamente, tomaram parte na intentona.
Nesse sentido, a comparação com os EUA é
incontornável. O golpismo do presidente Donald Trump contou com a complacência
de instituições que outrora foram a referência mundial de solidez
institucional. Trump não só escapou de punição, como retornou à Casa Branca
para um segundo mandato no qual promove com especial denodo a corrosão
sistemática dos pilares que fizeram seu país ser o que – ainda – é. O Brasil
trilha o caminho inverso.
Talvez por isso Trump esteja empregando o
descomunal poder dos EUA para atacar o STF e salvar Bolsonaro de seu destino
penal. Não por amizade, mas para impedir que no maior país da América Latina
floresça um exemplo de resistência democrática que amplie o contraste com a
genuflexão de parte das instituições americanas ao trumpismo. Poucos
aguentariam essa pressão que o STF hoje suporta, mas, até aqui, a Corte dá
mostras de firmeza exemplar.
Dito isso, convém não baixar a guarda. O
julgamento é apenas o fim da etapa judicial de um lamentável capítulo de nossa
história. Uma vez concluído, a pressão política por anistia aos eventuais
condenados aumentará no Congresso. É preciso resistir a esse movimento de
impunidade. Foi-se o tempo de acomodações e indulgência com golpistas nesta
república que hoje, seja qual for o resultado do julgamento que se inicia,
amanhece mais forte.
A ilegalidade óbvia das tarifas de Trump
O Estado de S. Paulo
Trump inventa ‘emergência’ para concentrar
poder. A decisão judicial que expôs o truque autoritário por trás das tarifas
venceu uma batalha na guerra em defesa da Constituição
Ao invalidar as tarifas generalizadas
impostas pelo presidente dos EUA, Donald Trump, com base na Lei de Poderes
Econômicos de Emergência Internacional (Ieepa, na sigla em inglês), a Corte de
Apelações do Circuito Federal dos EUA prestou um serviço vital ao Estado
Democrático de Direito americano. A decisão, por sete votos a quatro,
representa um limite à estratégia de expansão dos poderes presidenciais por
meio de decretos que se dizem “de emergência”. Mais do que uma questão
tarifária, está em jogo a separação de Poderes.
A Constituição americana é cristalina: o
presidente não pode impor tarifas – que são, em essência, tributos – sem
autorização do Congresso. A Ieepa, aprovada em 1977 para permitir sanções
econômicas específicas em tempos de emergência, jamais foi pensada como uma
carta branca para reescrever unilateralmente a política comercial americana. A
corte apontou que o texto da lei não menciona “tarifas”, “impostos” ou
“direitos aduaneiros”, e, como disse certa vez o juiz da Suprema Corte Antonin
Scalia, o Congresso “não esconde elefantes em buracos de ratos”.
Previsivelmente, Trump vilipendiou o tribunal
que o contrariou, qualificando-o como “altamente partidário”. Mas tanto entre
os juízes que subscreveram o voto vencedor quanto entre os dissidentes há
indicados do Partido Republicano, de Trump, e do Partido Democrata, de
oposição. A linha divisória, portanto, não foi partidária, mas institucional,
isto é, entre os que defendem limites constitucionais ao Executivo e os que
aceitam uma delegação implícita e ilimitada de poder.
A decisão vem na esteira de um padrão cada
vez mais agressivo do segundo mandato de Trump, que descumpre determinações do
Congresso, tenta intimidar o banco central, reprime universidades, ameaça a
imprensa e cria um embrião de força paramilitar a seu serviço. As tarifas
ilegais são apenas uma peça desse tabuleiro.
Diante da conivência de um Congresso
capturado por sabujos de Trump e da apatia de mercados que não reagem nem à
ameaça de captura do banco central nem à intervenção estatal em empresas
privadas, o Judiciário permanece como o último bastião. Caberá à Suprema Corte
decidir se manterá essa barreira ou se se curvará à lógica do poder irrestrito.
A decisão da Corte de Apelações já sinalizou o que está em jogo: não só a legalidade
de tarifas, mas a própria ideia de que o presidente está subordinado à lei, e
não acima dela.
Mesmo que fosse correta – o que não é –, a
alegação de que as tarifas são essenciais para o “renascimento industrial
americano” não justifica sua imposição por vias ilegais. Se o projeto é tão
necessário, que se busque o aval do Congresso. Mas Trump não quer submeter-se
ao rito democrático – quer o atalho do decreto e a blindagem da “emergência”. O
que está em disputa, portanto, não é só a economia, mas a Constituição.
A Corte de Apelações decidiu manter as
tarifas em vigor até que a Suprema Corte julgue o caso. Esse compasso de espera
não pode ser confundido com complacência. Trata-se de uma oportunidade para
restaurar os limites entre os Poderes – ou, se desperdiçada, de um ponto de não
retorno. A Suprema Corte já expandiu os poderes executivos em decisões
recentes; agora, terá de escolher se continua nessa trilha, que dá ao Executivo
de Trump um caráter monárquico, ou se resgata sua função de guardiã da separação
de Poderes.
O teste é decisivo. Se até o poder de
tributar – a mais sensível das prerrogativas constitucionais do Legislativo –
for absorvido pelo Executivo, o que restará ao Congresso? E se a Corte aceitar
essa usurpação, o que restará do próprio Judiciário?
As ambições absolutistas de Trump se
sustentam em uma fórmula rudimentar: alegar “emergência”, decretar medidas
extremas, desafiar os tribunais e posar como vítima. A resposta adequada a esse
ciclo não é o apaziguamento, mas a contenção constitucional. Ao reafirmar os
limites legais do poder presidencial, a Corte de Apelações ofereceu um antídoto
ao delírio imperial. A Suprema Corte, se quiser preservar sua autoridade e a da
Constituição que jurou defender, não pode desperdiçar essa oportunidade. O
império do arbítrio não pode triunfar sobre o império da lei.
A França em ‘looping’
O Estado de S. Paulo
A política bloqueia o ajuste fiscal, e a
degradação fiscal desestabiliza a política
A França se debruça sobre um abismo
institucional – de novo. O primeiro-ministro François Bayrou submeteu seu
governo a um voto de confiança, tentando dramatizar a necessidade de ajuste
fiscal e reconquistar legitimidade. A aposta parece fadada ao fracasso: sem
maioria parlamentar, em meio à hostilidade dos radicais de esquerda e de
direita, Bayrou dificilmente sobreviverá. O desfecho provável é a terceira
imolação do chefe de governo em pouco mais de um ano, e a continuidade de um
ciclo de instabilidade que mina a credibilidade do país.
O haraquiri de Bayrou ocorre em meio a uma
situação fiscal alarmante. A dívida pública (114% do PIB) já é a terceira maior
da zona do euro, o déficit segue acima de 5% e o serviço da dívida (66 bilhões
de euros) tornou-se o maior item orçamentário, superando educação e defesa. A
promessa de economizar 44 bilhões de euros com cortes de benefícios,
congelamentos e até a abolição de feriados mal arranha a superfície do problema
– e mesmo assim provoca resistência maciça da opinião pública.
A França não equilibra um orçamento desde
1974. Mas o que distingue a crise atual é a combinação de endividamento crônico
com paralisia institucional. O Parlamento está rachado em três blocos
inconciliáveis. O centro do presidente Emmanuel Macron perdeu a capacidade de
arbitrar, enquanto os radicais de esquerda e de direita competem em demagogia,
prometendo simultaneamente mais benefícios sociais e menos disciplina fiscal.
As barricadas políticas bloqueiam a economia e a degradação econômica desestabiliza
a política.
Esse círculo vicioso reflete um mal-estar
mais amplo que atravessa a Europa e as democracias ocidentais. O baixo
crescimento, a resistência a reformas e a dependência de dívidas crescentes
formam um caldo indigesto que favorece a ascensão de populistas. Todo ministro
das Finanças sabe que cortes são inevitáveis, mas cada ensaio de austeridade
provoca ondas de protestos que corroem o centro político. Eis o dilema: o
ajuste fiscal é economicamente incontornável, mas politicamente impraticável.
Os déficits inflamam o populismo, e o populismo inviabiliza a correção dos
déficits.
Esses impasses são cimentados por uma
psicologia social escapista. As populações europeias ainda vivem em relativo
conforto. A economia não é nem catastrófica – o que provocaria reformas
urgentes – nem dinâmica o bastante para sustentar o Estado de bem-estar. Sem
choques externos (como em 1973 ou 2008), líderes e eleitores tendem a se
esquivar de escolhas difíceis. Nem por isso o problema desaparece, ao contrário:
sem crescimento e sem reformas, a dívida cresce mais que a economia, corroendo
a base de prosperidade que sustenta o modelo social europeu.
Democracias maduras não são imunes a falências fiscais, e o estatismo crônico pode tornar até a segunda maior economia da União Europeia refém de suas próprias ilusões. O verdadeiro teste de liderança não será dramatizar a crise, mas mobilizar consensos sociais e políticos para enfrentá-la. A alternativa é a espiral interminável de crises de governo até que os mercados imponham, de forma brutal, a disciplina que a política se recusa a exercer.
A hora de punir quem merece punição
O Povo (CE)
O mundo observa com atenção o fim do longo,
penoso e traumático processo de investigação contra a tentativa de golpe de
Estado no Brasil. Em geral, reconhecendo que a sociedade está conseguindo
oferecer a resposta que a situação requer
Há um sentido histórico no julgamento que
começa nessa terça-feira, dia 2, sob os olhares atentos do País e, pode-se
dizer, também a curiosidade da comunidade internacional. Sentam-se no banco
dos réus os integrantes do chamado núcleo central de um movimento
observado entre os anos de 2022 e 2023, com objetivo definido de ignorar o
resultado eleitoral e manter no poder o então presidente da República, Jair
Bolsonaro, derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva.
A institucionalidade tem prevalecido, ainda
bem, e a decisão do eleitor, através da maioria, acabou sendo respeitada. É o
que demonstra a etapa de hoje do processo de resposta das forças do Estado, com
o início do julgamento de oito acusados de fazer parte deste núcleo, dentre
eles o próprio Jair Bolsonaro. A impunidade, no sentido de falta de
esforço para apurar e punir responsabilidades, não prevalecerá.
Além do ex-presidente, serão julgados
pela 1ª turma do STF seu ex-ajudante de ordens, tenente coronel Mauro
Cid, o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, o ex-dirigente da Abin,
Alexandre Ramagem, o almirante Almir Ganier, ex-comandante da Marinha, e os
generais Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno e Walter Braga Neto, todos
também integrantes do governo anterior ocupando cargos civis de primeiro
escalão. Na lista, destaca-se a condição de Mauro Cid, que fez acordo de
colaboração com a justiça e fundamenta, com seu depoimento, boa parte das
acusações.
O fato de tudo vir acontecendo no limite do
que é legal, garantindo defesa plena aos envolvidos, de maneira clara e
transparente, é uma vitória da democracia. Existem queixas, críticas e até
denúncias da parte dos que são acusados, especialmente considerando que um
deles tem capacidade de mobilizar muita gente em sua defesa, mas a postura
firme do ministro-relator, Alexandre de Moraes, e do conjunto do STF quando
chamado a se manifestar, garantiu que o processo chegasse à etapa de conclusão
que hoje começa a contar.
Com os excessos inevitáveis, de parte a
parte, as coisas registram-se dentro de uma normalidade aceitável, apesar do
teste a que tem sido submetida nossa estrutura institucional. Há prevalecido a
serenidade nas reações daqueles que agem em nome do Estado, inclusive quando a
situação atinge também o quadro econômico, como se dá na crise com os Estados
Unidos devido à decisão injustificável do governo de Donald Trump de
aplicar sanções contra o País e algumas autoridades brasileiras, atrelando-as a
uma pressão para interferir no processo em favor de um ex-aliado.
O mundo observa com atenção o fim do longo, penoso e traumático processo de investigação contra a tentativa de golpe de Estado no Brasil. Em geral, reconhecendo que a sociedade, através de suas representações institucionais, está conseguindo oferecer a resposta que a situação requer, esperando-se, até o dia 12 próximo, que a justiça se faça prevalecer. Punindo quem merecer punição, absolvendo quem justificar absolvição. Doa a quem doer.
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