terça-feira, 2 de setembro de 2025

Entre a história e a ameaça externa, por Míriam Leitão

O Globo

Sob ameaça de Trump e cobrança da história, STF inicia julgamento histórico dos que tentaram destruir a democracia

O mundo está olhando para nós. Sessenta e seis jornalistas estrangeiros estão credenciados para a cobertura. Foram fartas as matérias nos jornais mais influentes do planeta sobre o julgamento que começa hoje. De um lado, o Brasil está sob pressão da maior potência do mundo para não realizar o julgamento. De outro, diante da cobrança da História para que o processo seja exemplar. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vê no que acontece no Brasil um “péssimo exemplo”. Afinal, um candidato a autocrata pode ser condenado. A História do Brasil é repleta de golpes e quarteladas que sempre terminaram em anistia. O julgamento pode mudar este destino.

As provas são contundentes. Foram produzidas pelos próprios réus e encontradas com eles. Houve uma tentativa de golpe de Estado no Brasil comandada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a defesa dos réus consiga desmontar a delação premiada de Mauro Cid, a acusação se mantém porque não está baseada apenas na colaboração do ex-ajudante de ordens.

Houve uma série de falas públicas de Bolsonaro, em lives, em discursos, em atos. Nesses pronunciamentos, ele sempre fez ataques ao Judiciário e ameaças à democracia. Foram formulados planos, guardados em seus computadores, ou impressos e mantidos em poder dos acusados. Houve trocas de e-mails e de mensagens de WhatsApp, áudios comprometedores. Houve convocação de reunião com chefes militares para analisar as opções de ruptura da ordem democrática. Antes disso, ocorreu a troca de todos os comandantes na expectativa de ter comandos dóceis aos planos. Durante o curso do processo, testemunhas confirmaram as articulações pelo golpe. Alguns réus deram novos elementos para as acusações em seus interrogatórios.

A explicação para o fato de os réus não terem destruído as provas está na História do país. Como nunca houve punição para tentativas de golpe, eles avaliavam, provavelmente, que escapariam ilesos, como sempre ocorreu. Ou então acreditavam na vitória, e aqueles seriam documentos históricos a provar sua participação. Não há outra explicação para a sandice de preservar tantas provas. Ou era confiança na impunidade, ou a certeza da vitória.

As defesas vão insistir que as acusações são frágeis. Vão sustentar que há redundância nos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. O advogado do general Augusto Heleno, Matheus Milanez, afirma que o foco da sustentação será comprovar a inocência do militar. Diz ter provas “robustas” dessa inocência. Já o advogado de Anderson Torres, Eumar Novacki, sustenta que não há elementos que vinculem o ex-ministro à “narrativa” da PGR sobre a tentativa de golpe e ressalta que a viagem de Torres aos Estados Unidos, quando ocorreu o ataque aos prédios públicos, já estava previamente agendada. Diz que “O STF vai julgar de forma isenta”.

O advogado Thiago Bottino, professor da FGV Direito, depois de analisar a defesa de Bolsonaro, acha que será dedicado um período às questões processuais, alegando que não teve tempo suficiente para analisar todos os documentos e que isso cercearia o direito de defesa. Deve tentar também sustentar a invalidade da delação premiada de Mauro Cid. A de Braga Netto pode ir pelo mesmo caminho. Até agora, contudo, os advogados nada apresentaram que derrubasse a acusação.

Dos Estados Unidos devem vir mais pressões. Os ministros que votaram pela condenação de Jair Bolsonaro devem ser enquadrados nas sanções da Lei Magnitsky. Podem vir mais tarifas sobre setores na lista de exceção. O mundo já entendeu que Trump está chantageando o Brasil e pedindo em troca o impossível. Foi doloroso conquistar a democracia. Qualquer hesitação agora pode custar caro demais ao país que sabe, de experiência recente, a dor coletiva que a falta da democracia pode causar.

Entre esses dois fogos — o do ataque americano, e o peso da história brasileira — os ministros vão se debruçar sobre o conjunto probatório e julgar. Os oito réus do núcleo crucial foram o centro do poder até o fim de 2022. Estiveram muito perto de concluir o plano de destruir a democracia brasileira. Este é um tempo em que as democracias morrem quando governantes corroem as instituições. Como Trump está fazendo neste momento nos Estados Unidos. É um tempo perigoso. Por isso é tão importante o julgamento que começa hoje.

 

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