terça-feira, 2 de setembro de 2025

Supremo inicia o julgamento dos “predadores” da democracia, por Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

A tentativa de internacionalizar a defesa do ex-presidente Bolsonaro reforçou a percepção interna e externa de que se tratou de um atentado à soberania democrática do país

O julgamento de Jair Bolsonaro e de outros sete réus pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é um momento decisivo da nossa história. Trata-se não apenas de apurar responsabilidades criminais pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, mas também de medir a capacidade institucional de o Brasil responder ao avanço de forças autocráticas que, em escala global, têm corroído as bases da democracia liberal. O ex-presidente e outros sete réus, entre os quais três generais de Exército e um almirante de esquadra — fato inédito na República —, podem ter punição de até 43 anos de prisão.

Bolsonaro e os demais réus do chamado “núcleo crucial” (Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin; Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil) são acusados de cinco crimes: tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Há um sentido simbólico e pedagógico nesse julgamento: ninguém está acima da lei, nem mesmo um ex-presidente. Por isso, o paralelo com Donald Trump é central no noticiário internacional, que trata o caso brasileiro como um paradigma de defesa da democracia representativa. É considerado uma resposta àqueles líderes populistas e autocratas que o escritor e cientista político Giuliano da Empoli, autor de O Mago do Kremlin e Os Engenheiros do Caos, descreve em A Hora dos Predadores, seu mais recente livro.

O escritor ítalo-suíço mostra como — de Trump a Nayib Bukele, de Bolsonaro a Mohammed bin Salman — operam na lógica do caos, da desinformação e da corrosão institucional, valendo-se das plataformas digitais e de elites coniventes. Não são “rebeldes” contra a ordem estabelecida, mas novos dominadores que normalizam a ausência de regras e alimentam a política como espetáculo. Por essa razão, Bolsonaro também é descrito pela revista britânica The Economist como o “Trump dos trópicos”.

O ex-presidente brasileiro seguiu à risca o manual do “predador”: espalhou dúvidas sobre as urnas eletrônicas, mobilizou uma rede digital baseada em teorias conspiratórias e, por fim, acenou para a ruptura institucional que se concretizou nos ataques de 8 de janeiro de 2023. Assim como nos EUA em 6 de janeiro de 2021, o objetivo era impedir a posse de um presidente eleito legitimamente. Deu errado por causa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do STF. Em ambos os casos, pela firme, porém polêmica, atuação do ministro Alexandre de Moraes. De certa forma, ao atuar como um dique de contenção da maré crescente de extrema-direita mundial no Brasil, o Supremo hipertrofiou sua atuação.

Entretanto, vivemos uma mudança de época. Para Giuliano da Empoli, é a “era dos predadores”, em que líderes políticos autoritários e magnatas da tecnologia se guiam pela destruição das normas como método de poder. O caos digital, como ele descreve, tornou-se hegemônico no mundo. Ele lembra que os predadores prosperam quando as elites tradicionais se submetem ao novo ciclo tecnológico e populista, abdicando de defender regras mínimas.

Tiro pela culatra

Nesse contexto, o julgamento no Brasil adquire uma dimensão que transcende fronteiras: trata-se de mostrar que o Estado ainda pode reagir. Ao contrário dos EUA, onde a Suprema Corte reconheceu imunidade quase absoluta para Trump em seus atos oficiais, o STF brasileiro se apresenta como guardião da democracia, disposto a enfrentar o ex-presidente e sua rede.

A The Economist também chama atenção para o fato de que, mesmo com críticas à sua atuação, até aqui o Supremo foi capaz de sustentar a ordem constitucional. O que mais chama atenção internacional é o contraste com os EUA, uma vez que Trump transformou os processos em trampolim para sua volta ao poder. No Brasil, Bolsonaro tentou a mesma coisa, porém, foi declarado inelegível pelo TSE e pode sofrer uma condenação criminal duríssima. Não à toa, a revista britânica afirma que “o adulto democrático no hemisfério ocidental mudou para o sul”.

O julgamento de Bolsonaro, porém, provocou uma escalada de retaliações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, entre as quais o tarifaço de 50% sobre as importações de produtos brasileiros e sanções financeiras a Moraes, além da cassação de vistos de ministros da Corte e outras autoridades. A solidariedade ativa e ostensiva de Trump a Bolsonaro também animou seus aliados no Congresso, que é visto hoje como um elo fraco do sistema democrático brasileiro, quando institucionalmente deveria ser o contrário.

Analistas internacionais avaliam, porém, que a estratégia de Trump pode “sair pela culatra”. O peso dos EUA no comércio brasileiro diminuiu e, paradoxalmente, os ataques externos fortalecem Lula politicamente. A tentativa de internacionalizar a defesa de Bolsonaro reforçou a percepção de que se tratou de um atentado à soberania democrática. Parte da direita conservadora reconhece que Bolsonaro foi longe demais e, nos bastidores, torce para que seja condenado, jogue a toalha e desista de apoiar alguém do seu próprio clã nas eleições presidenciais de 2026. Isso permitiria o deslocamento do seu eixo político da extrema-direita em direção ao centro.

 

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