Correio Braziliense
A tentativa de
internacionalizar a defesa do ex-presidente Bolsonaro reforçou a percepção
interna e externa de que se tratou de um atentado à soberania democrática do
país
O julgamento de Jair Bolsonaro e de outros sete réus pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é um momento decisivo da nossa história. Trata-se não apenas de apurar responsabilidades criminais pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, mas também de medir a capacidade institucional de o Brasil responder ao avanço de forças autocráticas que, em escala global, têm corroído as bases da democracia liberal. O ex-presidente e outros sete réus, entre os quais três generais de Exército e um almirante de esquadra — fato inédito na República —, podem ter punição de até 43 anos de prisão.
Bolsonaro e os demais réus do chamado “núcleo
crucial” (Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin; Almir Garnier, ex-comandante
da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Augusto Heleno,
ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Mauro Cid, ex-ajudante de
ordens da Presidência; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e Walter
Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil) são acusados de cinco crimes: tentativa
de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de
Direito, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e
deterioração de patrimônio tombado.
Há um sentido simbólico e pedagógico nesse
julgamento: ninguém está acima da lei, nem mesmo um ex-presidente. Por isso, o
paralelo com Donald Trump é central no noticiário internacional, que trata o
caso brasileiro como um paradigma de defesa da democracia representativa. É
considerado uma resposta àqueles líderes populistas e autocratas que o escritor
e cientista político Giuliano da Empoli, autor de O Mago do Kremlin e Os
Engenheiros do Caos, descreve em A Hora dos Predadores, seu mais recente livro.
O escritor ítalo-suíço mostra como — de Trump
a Nayib Bukele, de Bolsonaro a Mohammed bin Salman — operam na lógica do caos,
da desinformação e da corrosão institucional, valendo-se das plataformas
digitais e de elites coniventes. Não são “rebeldes” contra a ordem
estabelecida, mas novos dominadores que normalizam a ausência de regras e
alimentam a política como espetáculo. Por essa razão, Bolsonaro também é
descrito pela revista britânica The Economist como o “Trump dos trópicos”.
O ex-presidente brasileiro seguiu à risca o
manual do “predador”: espalhou dúvidas sobre as urnas eletrônicas, mobilizou
uma rede digital baseada em teorias conspiratórias e, por fim, acenou para a
ruptura institucional que se concretizou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Assim como nos EUA em 6 de janeiro de 2021, o objetivo era impedir a posse de
um presidente eleito legitimamente. Deu errado por causa do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) e do STF. Em ambos os casos, pela firme, porém polêmica, atuação
do ministro Alexandre de Moraes. De certa forma, ao atuar como um dique de
contenção da maré crescente de extrema-direita mundial no Brasil, o Supremo
hipertrofiou sua atuação.
Entretanto, vivemos uma mudança de época.
Para Giuliano da Empoli, é a “era dos predadores”, em que líderes políticos
autoritários e magnatas da tecnologia se guiam pela destruição das normas como
método de poder. O caos digital, como ele descreve, tornou-se hegemônico no
mundo. Ele lembra que os predadores prosperam quando as elites tradicionais se
submetem ao novo ciclo tecnológico e populista, abdicando de defender regras
mínimas.
Tiro pela culatra
Nesse contexto, o julgamento no Brasil
adquire uma dimensão que transcende fronteiras: trata-se de mostrar que o
Estado ainda pode reagir. Ao contrário dos EUA, onde a Suprema Corte reconheceu
imunidade quase absoluta para Trump em seus atos oficiais, o STF brasileiro se
apresenta como guardião da democracia, disposto a enfrentar o ex-presidente e
sua rede.
A The Economist também chama atenção para o
fato de que, mesmo com críticas à sua atuação, até aqui o Supremo foi capaz de
sustentar a ordem constitucional. O que mais chama atenção internacional é o
contraste com os EUA, uma vez que Trump transformou os processos em trampolim
para sua volta ao poder. No Brasil, Bolsonaro tentou a mesma coisa, porém, foi
declarado inelegível pelo TSE e pode sofrer uma condenação criminal duríssima.
Não à toa, a revista britânica afirma que “o adulto democrático no hemisfério
ocidental mudou para o sul”.
O julgamento de Bolsonaro, porém, provocou
uma escalada de retaliações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
entre as quais o tarifaço de 50% sobre as importações de produtos brasileiros e
sanções financeiras a Moraes, além da cassação de vistos de ministros da Corte
e outras autoridades. A solidariedade ativa e ostensiva de Trump a Bolsonaro
também animou seus aliados no Congresso, que é visto hoje como um elo fraco do
sistema democrático brasileiro, quando institucionalmente deveria ser o contrário.
Analistas internacionais avaliam, porém, que
a estratégia de Trump pode “sair pela culatra”. O peso dos EUA no comércio
brasileiro diminuiu e, paradoxalmente, os ataques externos fortalecem Lula
politicamente. A tentativa de internacionalizar a defesa de Bolsonaro reforçou
a percepção de que se tratou de um atentado à soberania democrática. Parte da
direita conservadora reconhece que Bolsonaro foi longe demais e, nos
bastidores, torce para que seja condenado, jogue a toalha e desista de apoiar
alguém do seu próprio clã nas eleições presidenciais de 2026. Isso permitiria o
deslocamento do seu eixo político da extrema-direita em direção ao centro.
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