O Globo
Julgamento produzirá uma decisão da mais alta
Corte de Justiça do país que deverá ser acatada por todos, inclusive pelos
militares
Começa hoje um julgamento que entrará para a
História do país por suas características absolutamente inéditas. Da
redemocratização até hoje, o Brasil teve nove presidentes da República, e três
vices assumiram por questões distintas. José Sarney assumiu no lugar de
Tancredo Neves, que morreu sem tomar posse; Itamar Franco e Michel Temer
assumiram porque os presidentes eleitos, Fernando Collor de Mello e Dilma
Rousseff, foram impedidos pelo Congresso depois de processos comandados pelo
Supremo Tribunal Federal.
Dos nove, quatro foram presos: Lula e Temer, já soltos, Collor, que cumpre pena em prisão domiciliar, e Bolsonaro, que começa a ser julgado hoje, em prisão preventiva também em casa. Não é um histórico louvável, mas a diferença do julgamento de Bolsonaro é que, pela primeira vez, militares da mais alta patente — um almirante e três generais de quatro estrelas — envolvidos na tentativa golpista serão julgados por um júri civil, cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
É um julgamento histórico em várias acepções
da palavra. É seminal, porque nunca ocorreu e politicamente tem importância
fundamental para a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito,
pois produzirá uma decisão da mais alta Corte de Justiça do país que deverá ser
acatada por todos, inclusive pelos militares. É um processo que dura há algum
tempo, e todas as testemunhas de defesa foram ouvidas. O caso que será julgado
a partir de hoje é bastante claro, com provas e contraprovas testadas durante
meses por depoimentos, delações premiadas, investigações policiais.
Muitos países tornam-se simulacros de
democracias, com o governo autoritário, seja de esquerda ou de direita,
alterando a composição do Supremo para controlar suas decisões. Entre nós, isso
não aconteceu, por mais que possa haver críticas ao trabalho dos ministros do
STF. A composição do Supremo brasileiro é constante nos últimos anos, com
mudanças pontuais pela aposentadoria ou morte de um de seus membros. Não houve
intervenção de nenhum dos governos além da autorização constitucional de
escolher integrantes que se aproximem dos pontos de vista do presidente eleito
democraticamente, a quem cabe indicar os juízes.
O país está em ordem, não há qualquer
tentativa, até o momento, de tumultuar o panorama político, e é um avanço
grande para a democracia brasileira, que esteve muito próxima de se perder na
tentativa de golpe de 2022 e 2023. Os apoiadores de Bolsonaro estão protestando
— como os de Lula fizeram quando ele foi condenado. É um fato político
inarredável que quem perde o julgamento acuse o governo de interferência, mas
em nenhum momento a maioria da sociedade colocou em questão a validade do
processo, embora muitas críticas possam ser alegadas no decorrer dele.
Como sempre fui contra a decisão de terra
arrasada do STF em relação à Operação Lava-Jato —desmantelada pela postura
tecnicista de juízes que jogaram o bebê fora com a água da bacia, livrando
todos, corruptores e corrompidos, dos rigores da lei —, não custa lembrar que,
também neste processo, há deslizes técnicos e jurídicos que, mais adiante,
poderão facilitar a nulidade das ações. Não quer dizer que os fatos do golpe
contra a democracia não tenham acontecido, assim como os roubos do petrolão e
do mensalão também aconteceram.
São imperfeições que precisam ser corrigidas
para que o trabalho do Supremo seja cada vez mais respeitado. No entanto,
quando as acusações passam a ser tentativas de golpe, a democracia e o Estado
de Direito precisam reagir. Passamos por momentos turbulentos, mas importantes
para afirmar nosso estágio democrático, e estamos no caminho certo, apesar dos
pesares.
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