Política Democrática, nº 58.
A política pune a precipitação e faz apressados morderem a língua. Há pouco menos de 60 dias, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava nas cordas e não faltaram desavisados que apontavam Lula como aquilo que os norte-americanos chamam de “pato manco”. Agora, a mais de um ano da eleição de 2026, esses espíritos já indicam o presidente como virtualmente reeleito. Não fosse a experiência, a prudência lhes recomenda calma.
Recuperemos o processo. São conhecidas as deficiências do governo: não há um projeto de país tendo em vista o mundo deste vertiginoso século XXI. Não se articula o enorme potencial econômico e social brasileiro às exigências do modelo que vai se impondo em torno da revolução tecnológica dos últimos 40 anos e da emergência política, social e econômica da China, a partir do início do século.
Ok, não é muito fácil vislumbrar o futuro quando a principal característica do presente é a imprevisibilidade, como indica Sérgio Abranches em seu importante A Era do Imprevisto: a grande transição do século XXI (Companhia das Letras, 2017). E, diante dessa dificuldade, boa tarde da política tende a se voltar ao passado. O Make America Great Again, de Donald Trump, é a maior expressão disso.
De um modo ou de outro, essa rota de fuga é copiada em vários cantos do mundo. No Brasil, o governo ainda parece perdido nos tempos da indústria e dos sindicatos que compunham a cena do século passado, quando detinha o protagonismo do processo político. Em outros espaços, afirmei que “o presidente Lula é um homem de ontem, sua sorte é que seus adversários, quase sempre, são homens e mulheres da idade média”.
Essa incapacidade de compreender o presente e vislumbrar, pelo menos, algumas frestas do futuro, não é exclusividade de Lula. De alguma forma, isso esteve presente em todos os governos eleitos na década passada: os dois mandatos de Dilma Rousseff, o interregno de seu vice, Michel Temer, e o medieval Jair Bolsonaro que tentou implantar no país sua era das trevas. Governos fracos cujos organismos geram vírus oportunistas.
Esse oportunismo floresceu e se desenvolveu no Poder Legislativo, que, tampouco, acompanhou a transformação mundial e ainda encontrou sua forma de aproveitar-se da debilidade do Poder Executivo, que, no Brasil, foi sempre quem conduziu os processos políticos, controlando sua agenda de reformas no Parlamento. Debilitados governantes e governos perderam poder e o controle de uma boa parte do orçamento, desde sempre seu principal instrumento de persuasão política.
A política institucional do país passou a viver à base de todo tipo de emendas ao orçamento federal, estabelecendo como um novo – certamente, atrasado – sistema político: o do “coronelismo, emenda e votos”. O parlamentar de agenda nacional desapareceu; proliferaram verdadeiros “vereadores federais”, voltados à lógica municipalista ou, antes, ao sistema eleitoral baseado no curral político, de transparência ética duvidosa.
Em busca de blindagem política, o governo Bolsonaro entregou enorme espaço de poder, simbolizado, sobretudo, na nomeação do senador Ciro Nogueira, do centrão, à chefia da Casa-Civil da Presidência da República, o que fez com que a lógica das “emendas” se consolidasse.
No governo Lula, certamente, sem perceber a mudança, o Executivo sonhou recompor o sistema a partir da antiga lógica de participação das forças políticas nos ministérios, centralizadores de recursos do orçamento. Logicamente, isso já não interessava mais ao Legislativo que, de modo inédito, passou a desprezar nomeações para o ministério.
Sem conceber uma agenda moderna para o país e sem compreender os novos tempos também do sistema político, o governo era humilhado pelo parlamento praticamente tomado pelo espírito de um centrão robustecido a partir do vírus do oportunismo.
O ápice desse processo se deu quando, desautorizando o Executivo, o Parlamento resolveu aprovar o decreto legislativo em torno do Imposto sobre Operações Financeiras, o IOF. Quase sem sinais vitais, debruçado inerte sobre as cordas, o governo foi declarado morto. E Lula, o pato manco.
Mas os pulsos da política e da história ainda pulsam. Inadvertidamente foram os erros de seus próprios algozes que trataram de reanimá-lo. A vitória em relação ao IOF e a resistência em votar regras de isenção no imposto de renda de quem ganha até R$ 5.000,00 por mês despertaram a sensação de que o Parlamento não legisla para a maioria da população, beneficiando setores desde sempre favorecidos pelo imemorial patrimonialismo brasileiro.
Por méritos até então pouco conhecidos, o governo soube bem explorar isso. E, para surpresa de muitos — a começar pela cúpula das duas Casas do Congresso Nacional — passou a registrar mais expressivo apoio e engajamento nas Redes Sociais, logo expresso também nas pesquisas convencionais. Antes sem bandeiras, o governo passou a empunhar a da “defesa dos mais pobres”, numa reedição do discutível “nós contra eles”.
Depois, foram os erros do bolsonarismo ao reivindicar para si a articulação e a razão da brutal elevação de tarifas e demais sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos ao Brasil. E, em curto período, o governo Lula que não tinha bandeira alguma passou a dispor também de um segundo e justificado estandarte: o da defesa das Instituições e da soberania nacionais. O “pato manco” assumiu, então, o esplendor de pavão.
Medievais os adversários foram os responsáveis por essa guinada política. Os méritos do governo se deram por sua capacidade de reação, não pela estratégia e pela iniciativa políticas. Pode-se até afirmar que, na essência, o governo permanece o mesmo. Sendo que o comando do presidente Lula perdeu o timing de chamar a população e as forças políticas nacionais para uma frente ampla e um novo pacto baseado em outro modelo de governabilidade.
É um governo cujo bom momento, normalmente, serve-lhe de mau conselheiro. Carente de um “estado-maior” capaz de elaborar e articular politicamente, pobre na formulação de projeto nacional, Lula está quase sempre rodeado de quadros pouco experientes e bastante subservientes. O presidente continua concentrando a lógica do governo baseado nos valores e na mentalidade de um “homem de ontem”.
Isso não inspira animação para quem olha a hipótese de um segundo mandato – o quarto, na trajetória do presidente – expressão do “mais do mesmo”. Verdade que seus adversários, quase todos medievais, tão pouco inspiradores do futuro, estão enrolados entre “ser ou não ser” caudatários de um bolsonarismo mais que desgastado. Restando ser mais como uma espécie de wishful thinking da Avenida Faria Lima do que real alternativa a Lula.
Assim, a história e a política, sempre indóceis, não cessam e pedem calma. Como diz a canção, o tempo “sussurra e apaga caminhos”. Videntes terminam sozinhos. Para elas, a história e a política, é sempre cedo. Podem continuar a punir e a fazer com que os apressados mordam a língua. O dever do analista consiste em observar e compreendê-las; não em adivinhar seus desígnios. Vamos em frente.
*Carlos Melo é cientista político, mestre e doutor pela PUC-SP. Professor Senior Fellow do Insper, onde é também coordenador do Observatório da Política. Colaborador de vários veículos da grande imprensa
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