Filme: Costa-Gavras. Uma Bela Vida (Título original: Le dernier souffle). França: KG Productions, 2024. 1 hora e 37 minutos.
Para Luis Fernando Verissimo
No último dia 18 de agosto, a Fundação Casa
de Rui Barbosa (Botafogo) recebeu estudantes do Colégio Estadual Profª
Jeannette Mannarino (Campo Grande).
O evento, promovido pelo amigo e pesquisador da instituição Júlio Aurélio Vianna Lopes e conduzido por Vagner Gomes de Souza, o professor desses estudantes e doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Antes, num encontro rápido com o professor e seus alunos e alunas, houve uma brincadeira entre nós e dela surgiu essa indicação fílmica de Uma Bela Vida.
O filme nos apresenta uma amizade que se constrói entre o médico Augustin Masset, chefe de uma unidade de cuidados paliativos, e o escritor-filósofo Fabrice Toussaint, que acaba de fazer uma ressonância magnética onde se identifica um tumor, e nessa amizade nascente discutem o fim da vida um com o outro. Ao longo do filme o médico mostra a diversidade de reações e atitudes de seus pacientes (símiles aos dos estudantes), e o escritor-filósofo observa situações que ecoam seu próprio destino.
O filme nasce da leitura do livro de Régis Debray (escritor-filósofo) Le dernier souffle. Accompagner la fin de vie, avec Claude Grange (o médico), − Paris: Gallimard, coll. Témoins, 2023, 128 p. − que numa tradução livre seria O último suspiro. Acompanhando o fim da vida.
Esse filme, que havia sido exibido no
Festival do Rio em 2024 e recém-lançado (segunda quinzena de julho próximo) no
circuito de cinemas brasileiros, acabou por nos encontrar com as perdas em maio
de Sebastião Salgado (1944-2025), de Preta Gil (1974-2025) na penúltima semana
de julho, de Arlindo Cruz (1958-2025) no início de agosto e agora de Luis
Fernando Verissimo (1936-2025).
O saudoso amigo Ferreira Gullar (1930-2016) no poema “Rainer Maria Rilke e a morte” escreveu
O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amadurecida
em nosso coração.
E, no entanto,
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.¹
Essa breve recordação nos remeteu ao seguinte poema do tcheco
Adianta-te a toda a despedida,
como se estivesse já
para trás de ti,
como o inverno que agora parte.
Pois que entre os invernos há um tão infinito
Embora o inverno tenha acabado há pouco, os versos de Rainer Maria Rilke (1875-1926) seguem sendo esclarecedores nos dias de hoje. Aqui, no Rio de Janeiro, reaprendemos a viver o inverno e não nos desesperar com ele. Na poesia de Rilke há toda uma pedagogia a atravessar e quem sabe ficar nesta estação que mais se esquiva: ele nos convida a vê-la como uma estação propícia à introspecção, ao trabalho interior e à preparação para a primavera.
Cada estação do ano exige seu próprio trabalho: estamos mais ligados à Natureza do que costumamos acreditar. Em uma civilização cada vez mais artificial, é muito fácil se desconectar desses processos e das transformações silenciosas da terra. Para Neruda (1904-1973), a chuva tenaz de Temuco (sul do Chile) foi sua “professora” na infância. Cada estação do ano exige que tenhamos certos exercícios mentais específicos; e talvez por não os fazermos, somos cada vez mais assaltados pela ansiedade, angústia e depressão. Talvez seja isso que Rilke quer dizer quando diz que “sob os invernos, há um inverno tão infinito”. Para resistir, você tem que viver e morrer o inverno, não fugir dele. É uma questão de observar árvores, plantas e jardins, para perceber como a natureza nos ensina estratégias para resistir.
Em 1922, Rilke enviou uma carta a uma jovem admiradora, Lisa Heise: “Cuidar do meu jardim interior foi esplêndido neste inverno. De repente, para me curar novamente e ter consciência de que a base do meu ser tinha tempo e espaço para continuar crescendo, e do meu coração veio uma luminosidade que eu não sentia tão fortemente há muito tempo.” Para Rilke o inverno não é uma estação estéril.
Porque o inverno é um tempo de esperança que perdemos no nosso tempo vertiginoso, em que somos prisioneiros do imediatismo. Quem está esperançando? Se não soubermos esperançar, não haverá primavera possível. O inverno nos ensina a esperançar. E esperançar – ao contrário do que se acredita – não é uma atividade passiva, requer um temperamento muito grande e força interior: é uma atividade na qual uma série de energias e disposições são exibidas que só os grandes guerreiros possuem. Não foi essa uma das grandes lições que Gilberto Gil ofereceu a sua filha amada? Aquele que põe as mãos no chão do Drão sabe o que é esperançar. Na educação, na vida, todos devemos aprender a colocar-nos no “modo inverno”, predispor-nos a cultivar no nosso jardim interior (tão abandonado), as flores da consolação, as sementes da esperança escondida, tão necessárias.
Talvez o livro mais pessoal do filosofo coreano quase crioulo alemão Byung-Chul Han seja Louvor à Terra: Uma viagem ao jardim. Em um de seus capítulos, ele para em seu amado jardim de inverno em Berlim. Aquele jardim lhe dá “ser e tempo”. E quanto à mão da jardineira e do jardineiro, ele diz: “Reflito sobre a mão do jardineiro. O que ela toca? Ela é uma mão amorosa, que espera, paciente. Ela toca o que ainda não está lá. Ela protege a distância. Nisso consiste sua felicidade.” No inverno, devemos aprender a “cultivar distâncias” em nosso jardim, para sermos também jardineiros de nosso outro jardim, o interior, como Rilke. Ambas as posturas estão intimamente ligadas. Há muito trabalho a ser feito, muita poda e cuidado próprio. E, acima de tudo, perceber que “sob os invernos, há um inverno tão infinito” (para que não seja vivido com angústia nem crise pessoal) exige tanto trabalho dedicado quanto o do jardim da vida como o do filme. Não vamos perder a oportunidade que este filme nos dá. Vamos resistir e embalar. Antecipemo-nos a cada despedida para que possamos oferecer a bela despedida da vida.
¹ – GULLAR, Ferreira. Rainer Maria Rilke e a morte. In Folha de São Paulo, domingo, 9 de setembro de 2001.
*Ricardo Marinho é Professor da Teia de Saberes, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
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