Valor Econômico
População sofre com a expansão da violência
em áreas abandonadas pelo Estado
Em formação, os policiais avançaram pelas
ruas dos complexos do Alemão e da Penha na terça-feira (28), no Rio, seguindo à
risca o plano que resultaria na morte de 121 pessoas. O tiroteio era intenso.
Ao ouvir os relatos da operação, muitos podem ter se surpreendido com a
informação de que as forças de segurança era monitoradas por drones e um
sofisticado sistema de câmeras instalado pelo narcotráfico. Ficou no passado a
cena de jovens alertando os comparsas com rojões, enquanto empreendiam fuga
comunidade adentro. Mas uma coisa não mudou: passada a operação e recolhidos os
corpos, a polícia bateu em retirada. A população mais uma vez foi abandonada
pelo Estado.
Os governos federal, estaduais e municipais precisam, com urgência, aprofundar as discussões sobre a retomada dos territórios dominados pelo crime.
É verdade que dois importantes passos foram dados pelo governo Lula recentemente. Mas, ressalte-se, ambos tardios.
O primeiro foi o envio ao Congresso da PEC da
Segurança Pública. Muito tempo passou entre a elaboração da proposta de emenda
constitucional pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, a sua análise no
Palácio do Planalto e o encaminhamento ao Legislativo.
A PEC amplia o papel do governo federal na
formulação de políticas públicas na área e dá mais instrumentos de coordenação
ao poder central. Constitucionaliza o Sistema Único de Segurança Pública, o
Susp, previsto há anos e cuja implementação claudica. Vislumbra-se a integração
entre as polícias, o compartilhamento de dados e a padronização de
procedimentos. O governo também tenta fortalecer a Polícia Federal (PF) e
ampliar a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para outros modais de
transporte, além de fixar atribuições para as guardas municipais. A oposição
resiste.
Em um segundo e importante passo, que também
demorou mais do que o considerado prudente para um governo que precisa dar
respostas à sociedade na área da segurança pública, o Executivo enviou na
sexta-feira (31) ao Congresso o Projeto de Lei Antifacção. Inicialmente
concebido como “Lei Antimáfia”, a primeira vez que se falou dele em público foi
em uma entrevista ao Valor do
secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, em agosto de 2024.
Mas demorou até a construção de um consenso em relação ao texto.
O projeto agrava punições e facilita
investigações contra facções. Permite a infiltração de policiais, viabiliza o
acesso a dados telemáticos dos suspeitos e autoriza a criação do Banco Nacional
de Facções Criminosas. Além de tentar blindar o poder público, com a previsão
de afastamento de cargos por decisão judicial quando existir sinais de
envolvimento com o crime organizado, proíbe a participação em licitações e o
acesso a incentivos fiscais de empresas que forem alvo de inquérito. O projeto
ainda abre caminho para o monitoramento de conversas entre faccionados e seus
advogados.
A oposição também resiste. Não quer entregar
a Lula um trunfo na disputa eleitoral, preferindo apostar no projeto que dá às
facções o rótulo de “grupos terroristas”. O governo de Donald Trump agradece.
Afinal, é o que precisa para tentar legitimar eventuais ações militares contra
essas organizações em território brasileiro, ferindo a soberania nacional.
Um terceiro pilar da estratégia do governo
federal prospera aos poucos, com discrição.
Trata-se justamente de um projeto piloto para
a retomada territorial, medida considerada fundamental para romper o ciclo e o
domínio econômico por parte de facções e milícias. Nas palavras de uma
autoridade, é uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) com mais ciência e
trabalho de inteligência. A ideia é envolver, além do governo federal, Estados,
prefeituras, Ministério Público e as diversas polícias.
São quatro os pilares do programa, sendo o
primeiro o desenvolvimento de um modelo de gestão integrada. O segundo, por
meio da inteligência, é a investigação para a identificação de pessoas e
segmentos econômicos que servem de lastro para o domínio territorial do crime
organizado em determinada localidade. Aí ocorre a intervenção policial, tendo
como premissa uma ação cirúrgica e de baixa letalidade. Por fim, espera-se a
entrada do Estado com serviços, pois sem eles não há substituição da economia
ilegal.
Nesta etapa, o poder público precisa promover
a qualificação dos jovens, atuar contra as drogas e mediar conflitos, o que
muitas vezes é feito pelo crime organizado de forma violenta. Na sequência, é
necessário asfaltar ruas, iluminar as vias públicas, assegurar o acesso à
internet comercial, além de oferecer saneamento, esporte e educação. A área de
defesa do consumidor do Ministério da Justiça também está envolvida, para que
os cidadãos dessas regiões conheçam seus direitos. Tudo isso com a polícia
presente.
Mas o governo Lula só conseguiu adesão para o
piloto numa terceira tentativa entre governadores aliados, em uma prova de que
“integração” é uma palavra bonita que muitas vezes, lamentavelmente, não é
colocada em prática na relações federativas. Com o teste concluído, está
previsto para o mês que vem o anúncio de uma nova política pública de retomada
territorial.
Enquanto isso, preocupa autoridades do
governo federal a possibilidade de o vazio deixado pelas forças policiais nos
complexos do Alemão e da Penha ser preenchido por traficantes rivais do Comando
Vermelho. Ou pela milícia. Mais uma vez a população local sofreria com a
expansão da violência em áreas abandonadas pelo Estado.

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