O Estado de S. Paulo
O planeta está fora de controle. Há erosão na
ordem mundial. A recomposição exige a cooperação entre povos, Estados e
indivíduos
Uma questão paira sobre as cabeças pensantes:
a democracia, tal como a conhecemos desde o século 18 – ou seja, como
democracia representativa –, ainda interage bem com o capitalismo dos tempos
atuais?
As democracias seguem parâmetros consolidados: liberdade de associação, palavra e escolhas, direitos cívicos, ética pública, cidadãos politicamente educados. Obedecem a um conjunto de regras, que Norberto Bobbio chamava de “regras primárias”, com as quais se define quem está autorizado a tomar decisões coletivas e mediante quais procedimentos. O liberalismo político é sua alma mater.
A democracia depende de eleições regulares.
Mas não apenas. A regra da maioria só faz sentido se os cidadãos se engajarem
em processos eleitorais que lhes apresentem alternativas substanciosas e
claras. Combina-se, portanto, com incentivos à participação, uma imprensa livre
e independente, bons sistemas escolares, instituições contramajoritárias
respeitadas e relacionamento equilibrado entre o Executivo e o Legislativo. Tão
importante quanto uma boa institucionalidade é uma cidadania politicamente
educada.
A democracia mudou no correr do tempo.
Ampliou-se e ficou mais “social”. Adaptou-se a cada etapa do capitalismo e a
cada avanço das sociedades civis. Deu lugar a partidos de massas, novos
direitos, modificações no sistema eleitoral, novas modalidades de associação e
seguridade social. O liberalismo político permaneceu pulsando, mas a sombra do
autoritarismo não se desfez.
Até chegarmos ao século 21. A comunicação
digital, a inovação tecnológica incessante, os deslocamentos populacionais, o
mercado impetuoso, as guerras, o crime organizado e mais uma fileira de outras
desgraças, não pouparam as democracias. Uma tempestade varreu as sociedades,
desorganizando-as. A vida se acelerou. Surgiram novos valores e comportamentos,
alargaram-se as lacunas geracionais que, somadas à desestruturação das classes
e grupos sociais, fragmentaram as sociedades e criaram polarizações recorrentes,
ora mais, ora menos tóxicas. O diálogo refluiu. Cada pedaço fechou-se em si
mesmo e se “revoltou”. Os indivíduos ficaram soltos, sem referências.
A tempestade arrebentou as muralhas que
protegiam as sociedades, “cercavam” os indivíduos e alimentavam um padrão de
coesão e solidariedade. Surgiram espaços por onde se infiltraram lideranças
políticas toscas, demagógicas, populistas, amantes do caos. A extrema direita
se internacionalizou e ganhou protagonismo.
Com o poder que adquirem, os autocratas minam
o aparato democrático. Em vez de “acabar com a democracia”, proclamam-se seus
salvadores, ativando mecanismos e procedimentos que aos poucos vão
descaracterizando a democracia. Eleições se sucedem, rotinas são preservadas,
jornais circulam, a aparência é de normalidade, mas pequenas bolhas de oxidação
vão enferrujando a democracia, a cidadania, a cultura cívica. A população vai
se acostumando ao “novo normal”.
Os autocratas ganham eleições porque
mobilizam mídias e redes, porque montam potentes máquinas de propaganda e são
financiados por empresas hostis às elites políticas tradicionais. Contam com
apoios de parte da população, que aceita as ilusões ofertadas.
Rodeiam-se de cúmplices e aliados, donos de
pequenos poderes que fingem ou não conseguem ver o que está a ocorrer,
prisioneiros que são da ignorância, da sabujice, de uma ética pública rebaixada
e de interesses mesquinhos. Aderem para se beneficiar.
As democracias estão sob fogo cruzado. Os
problemas continuam a ser nacionais: cada sociedade tem suas mazelas para
resolver. Mas a influência global é intensa. A disputa comercial e as
chantagens tarifárias, ao estilo de Trump, perturbam as soberanias nacionais e
a gestão econômica. O problema ambiental é de todos, mas exige, de cada
governo, atenção redobrada. Dá-se o mesmo com o tráfico de drogas, dinheiro e
pessoas, as ondas migratórias, as redes sociais manipuladas por grandes
corporações. Tudo é dilema. A pandemia de 2020 mostrou bem a face diabólica da
atual globalização.
O planeta está fora de controle. Há erosão na
ordem mundial. A recomposição exige a cooperação entre povos, Estados e
indivíduos. Mas o multilateralismo está problematizado, a política
internacional não tem fôlego para ir além dos Estados, as iniciativas globais
não avançam com facilidade, as potências insistem em ser “donas” do mundo.
Os sujeitos da democracia estão defasados.
Sem se reinventarem, os partidos não voltarão a ser associações de cidadãos
ativos. Os políticos não podem mais se limitar às manobras usuais: seus truques
ficaram insuficientes. Os cidadãos precisam se educar politicamente. Todos
precisam incorporar conhecimentos, filtrar informações, privilegiar o diálogo e
a dimensão coletiva da vida, com seus conflitos.
O desafio é fazer com que essa pluralidade de atores assimile as carências humanas planetárias, para que os regimes nacionais funcionem melhor, cooperem com os demais e se ponham generosamente no mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário