Folha de S. Paulo
Assim como a sociedade brasileira e suas
instituições têm sabido se defender dos ataques da extrema direita, saberão se
proteger agora dos traidores da pátria
Nos últimos dias, em face das investidas
do presidente
norte-americano contra o Poder Judiciário brasileiro, muito tem se
falado em soberania no Brasil. Mas de que soberania estamos falando?
A soberania nada mais é do que o poder de um
povo de determinar o seu próprio destino, de acordo com suas leis e suas
instituições.
Mas este não era o seu sentido original. O conceito de soberania foi incorporado à linguagem jurídica e política no final da idade média, para designar a autoridade absoluta e incontrastável da monarquia sobre seus súditos, em um determinado território. No plano internacional, o termo serviu para indicar a independência de um Estado em relação às demais nações.
Ao longo dos séculos, o conceito de soberania
foi sendo profundamente reformulado. Rousseau subverteu
o conceito ao retirar a soberania das mãos do príncipe e transferi-la aos
cidadãos. A ideia de soberania popular, por ele proposta, reivindica que o
poder apenas seria legítimo quando representasse uma fiel expressão da vontade
popular.
O conceito de soberania sofreria uma
reformulação ainda mais radical, com a ascensão dos regimes constitucionais,
estruturados a partir de um sistema de separação de poderes e pela garantia dos
direitos fundamentais. Neste momento, o conceito de soberania se afastou, por
definitivo, da ideia de poder absoluto, passando a designar uma ordem política
pautada na constituição e nos direitos fundamentais.
No plano internacional, no entanto, o
conceito de soberania só entraria em declínio após a barbárie do holocausto,
do colonialismo e a perspectiva de destruição total decorrente do desfecho
da 2ª
Guerra.
A criação de uma nova ordem internacional
baseada na proibição da guerra, no reconhecimento dos direitos humanos, da
autodeterminação dos povos, na cooperação e no respeito ao direito
internacional domesticaram o conceito de soberania e, mais importante, abriram
uma nova perspectiva civilizatória à humanidade.
A Constituição
de 1988 incorpora em seus primeiros artigos essa concepção humanista
de soberania, ao reconhecer que "todo poder emana do povo, que o exerce
por meio de seus representantes ou diretamente, nos termos da
Constituição"; que os Poderes devem ser "independentes e
harmônicos"; que a República deve perseguir a "construção de uma
sociedade livre, justa e solidária" o "desenvolvimento
nacional", "reduzir as desigualdades" e "promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de
discriminação".
No plano internacional, a República
Federativa do Brasil deve reger-se, entre outros, pelos princípios da
"independência nacional", "prevalência dos direitos
humanos", "não intervenção", "repúdio ao racismo e ao
terrorismo" e "solução pacífica dos conflitos". O mesmo respeito
que tem com as demais nações o Brasil exige para si.
Foi em defesa dessa concepção generosa,
democrática e inclusiva de soberania, que centenas de organizações e milhares
de pessoas, representando muitas outras, se manifestaram nesta última
sexta-feira no histórico Largo de São Francisco.
Assim como a sociedade brasileira e suas
instituições têm sabido se defender ao longo dos últimos anos dos ataques
perpetrados pela extrema direita contra o Estado Democrático de Direito,
saberão se proteger agora dos traidores da pátria, assim como daqueles que
atentam contra a sua democrática soberania.
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