O Globo
A posse de Ana Maria Gonçalves na ABL foi um
momento marcante, mais por questões históricas do que políticas
A Academia Brasileira de Letras (ABL) viveu na sexta-feira noite histórica, com a posse da primeira escritora negra, a romancista Ana Maria Gonçalves, autora do livro icônico “Um defeito de cor”, já considerado um dos maiores romances da literatura brasileira. Sua chegada à ABL trouxe com ela mais uma vez a discussão sobre dois temas polêmicos, o racismo e a misoginia, que marcaram a maioria das sociedades no século em que a ABL foi fundada, há 128 anos, em 1897. Como salientou a atriz e acadêmica Fernanda Montenegro, Ana Maria Gonçalves chegou à Academia por ser uma grande escritora, não por ser negra. O fato de ser mulher e negra tornou sua posse um momento marcante, mais por questões históricas do que políticas.
Da mesma maneira, a candidatura fracassada da
escritora Conceição Evaristo, aclamada na noite de posse na sexta-feira como
uma espécie de responsável por supostamente abrir as portas da ABL às minorias
negras, deu-se devido ao caráter de anticandidatura que ela adotou, não a vetos
racistas ou misóginos. Na ocasião, já tínhamos Domício Proença Filho na ABL, da
qual foi presidente, e hoje temos também Gilberto Gil. Comecemos pelas
mulheres, claramente subrepresentadas na ABL, vejamos como as diversas
circunstâncias marcam suas ausências. Clóvis Bevilaqua, jurista cearense, um
dos fundadores da ABL, foi citado tanto por Ana Maria quanto pela também
acadêmica Lilia Schwarcz, que a recebeu, como exemplo de resistência, pois
rompeu com a ABL porque sua mulher Amélia, uma grande escritora, não foi
aceita, por ser mulher.
Clóvis se indignou, no começo dos anos 30 do
século passado, mas, objetivamente, não mostrou a mesma irresignação quando
propôs o novo Código Civil, promulgado em 1916. No anteprojeto, a mulher
casada, relativamente incapaz, tinha, entre outras limitações, seus bens
legalmente administrados pelo marido. Na prática, as mulheres precisavam da
autorização do consorte para realizar todos os atos da vida civil (modelo que
se encerrou, no Brasil, somente em 1962). Mesmo com todas as restrições de um
modelo de sociedade antropocêntrico, a Academia Brasileira de Letras
antecipou-se à sua congênere francesa e acolheu a primeira mulher, Rachel de
Queiroz em 1977, enquanto Marguerite Yourcenar só entrou na francesa em 1980.
Atualmente, a Academia Francesa tem sete mulheres entre seus membros, e a
Academia Brasileira tem seis acadêmicas.
O historiador Alberto da Costa e Silva,
Prêmio Camões de Literatura, que ambas protagonistas da noite citaram como
exemplo e mentor, era dos que mais se irritava com essa discussão sobre a
presença de negros na ABL. Numa sessão plenária, deu-se ao trabalho de listar
alguns grandes negros do alto mundo da cultura brasileira membros da Academia
Brasileira de Letras, como Evaristo de Moraes Filho, Octavio Mangabeira e José
do Patrocínio, entre outros. Para Alberto da Costa e Silva, a história
subterrânea do mestiço no Brasil precisa ser escrita com seriedade, sem viés
político, a começar por Machado de Assis, cuja certidão de óbito o classificava
como “branco”.
O poeta e crítico literário Antonio Carlos
Secchin comentou também que não foi em função da cor da pele que o poeta Cruz e
Sousa não entrou na ABL, mas pelo jogo do poder político em que o predomínio,
na Capital Federal, era o Parnasianismo, enquanto o Simbolismo era apenas um
movimento de província, com grandes dificuldades de penetração e de inserção na
mídia carioca. O jornalista e escritor Cícero Sandroni citou o exemplo do seu
sogro, o também jornalista e grande presidente da ABL Austregésilo de Athayde,
descendente direto de índígenas. Lembrou que Assis Chateaubriand só o tratava
de caboclo, e Darcy Ribeiro o chamava de cacique. Lembrou ainda que entre os
fundadores da ABL estava o jornalista José do Patrocínio, e que, em 1919,
assumiu outro negro, Dom Silvério Gomes Pimenta, o primeiro religioso a
tornar-se acadêmico.
A chegada de Ana Maria Gonçalves à ABL marca
os avanços que a instituição está dando em direção à maior representatividade
social da cultura brasileira, tanto em sua composição quanto em suas ações.

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