O Globo
Eleição de Zohran Mamdani foi a expressão de
uma geração faminta por mudanças reais ou imaginadas
Pelo Artigo II, Seção 1, Cláusula 5 da
Constituição dos Estados Unidos, Zohran Kwame Mamdani jamais poderá cogitar
concorrer à Presidência do país — ele não é cidadão nato, ponto final e
intransponível. Fora isso, já fez história. Com a petulante idade de 34 anos,
Mamdani elegeu-se prefeito da indômita Nova York na última terça-feira, dia 4.
Nascido em Uganda de
pais indianos que, primeiro, se mudaram para a África do Sul e, quando Zohran
tinha 7 anos, cruzaram o Atlântico e foram se instalar em Manhattan, o futuro
burgomestre declara-se socialista na meca do capital e muçulmano praticante na
cidade que abriga a maior comunidade judaica fora de Israel. É a síntese
de identidades africana, asiática, muçulmana e nova-iorquina.
Sua carreira pública, esquálida até tornar-se esfuziante, começou com a obtenção da cidadania americana em 2018. Dos dois mandatos como deputado estadual sobraram um programa-piloto de gratuidade no transporte e a lembrança de uma greve de fome por melhores condições de trabalho para os taxistas de Nova York. Ainda assim, derrotou o veterano em idade, experiência e linhagem política Andrew Cuomo, de 67 anos, filho de governador e ele mesmo três vezes governador de Nova York, até renunciar ao cargo, em 2021, sob denúncias múltiplas de assédio sexual.
Como o moleque recém-chegado conseguiu? E por
quê?
Seu exército de mais de 100 mil voluntários,
que tocaram a campainha de meio milhão de moradias em Nova York, e a enxurrada
de pequenas contribuições individuais à campanha ajudaram. Sua habilidosa
presença nas redes sociais e a capacidade de se fazer ouvir por quem perdera
interesse em eleição também pesaram bastante. Mas impactante mesmo foi sua
lista de promessas populistas alinhavadas como mantra (creches gratuitas para
todos, ônibus municipais gratuitos, congelamento de aluguéis sociais, entre
outros). A tal ponto que, no discurso de vitória, Mamdami fez calculada pausa
depois de entoar a frase:
— E juntos, Nova York, vamos congelar o...
Aguardou.
A multidão completou:
— Aluguel!
Foi arriscada a decisão de eleger sangue tão
novo para administrar um orçamento de US$ 112 bilhões e comandar um
Departamento de Polícia maior que o efetivo militar de muitos países. Mas foi a
expressão de uma geração faminta por mudanças reais ou imaginadas, impulsionada
por forças semelhantes às que elegeram Donald Trump em
2016 — só que às avessas. De repente, o mundo de Trump pareceu o que é —
velhaco.
Mamdani abriu seu discurso citando famosa
frase de Eugene Debs, histórico líder socialista americano:
— Enquanto houver uma classe inferior, estou
nela, enquanto houver uma alma na prisão, não sou um homem livre.
(Filho de imigrantes franceses do século XIX,
Debs foi líder sindical, enfrentou o robber baron das ferrovias George Pullman,
ficou preso por anos e candidatou-se duas vezes à Casa Branca, uma delas
enquanto cumpria pena.)
A citação escolhida atesta quanto Mamdani
sabe que precisará do ativismo sustentado dos nova-iorquinos para tocar sua
ambiciosa pauta social e transformação cultural. Para a escritora canadense
Naomi Klein, que fez a cobertura da campanha, deve-se considerar o arrastão
Mamdani como um movimento.
— É , também, a antítese do fascismo, pois os
fascistas querem que sejamos todos iguais. Eles celebram a conformidade, a
uniformidade, a homogeneidade, a hierarquia. E Nova York é uma cidade
indisciplinada. Toda a campanha foi uma carta de amor à diversidade,
linguística, religiosa e cultural da cidade — resumiu em entrevista à Democracy
Now.
O alarme no planeta Trump é deliberadamente
insincero, visando alimentar o amargor com a vitória de adversário tão
indomável do presidente.
— Este homem (Mamdani) veio para os Estados
Unidos para fazer do país uma teocracia islâmica — alardeia o deputado
republicano Andy Ogles, do longínquo Tennessee.
— A Flórida recebe há décadas refugiados de
regimes comunistas e socialistas — postou o senador Rick Scott. — E acolheremos
todos os nova-iorquinos amantes da liberdade.
Nas próprias fileiras mais acomodadas do
Partido Democrata houve reticências feias. Hakeem Jeffries, líder democrata na
Câmara, só apoiou Mamdani tardiamente, assim como o ex-presidente Barack Obama.
O veterano Chuck Schumer, líder da minoria no Senado, simplesmente declinou
apoiá-lo.
Mamdani foi apenas a figura mais visível da
miríade de eleições realizadas em vários estados americanos. Foi uma surra e
tanto no Partido Republicano — desde cargos de primeira linha, como governador
(agora governadoras) na Virgínia e Nova Jersey, até conselhos escolares locais,
legislaturas estaduais, vagas para juízes estaduais. Nem os democratas
acreditavam que havia tanto sangue novo correndo pelo país com um denominador
comum: a percepção de que o governo Trump 2, com menos de um ano de idade, está
rateando. Como diz o bordão, “é a economia, estúpido”. Tarifas e deportações em
massa não conseguiram pôr comida mais barata na mesa.
Há esperança.

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