domingo, 16 de novembro de 2025

Derrite contra a Polícia Federal, por Elio Gaspari

O Globo

Secretário de Segurança de São Paulo produziu um monstrengo revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do país

Se Guilherme Derrite fosse um transeunte laçado na Praça dos Três Poderes para redigir um projeto de combate ao crime organizado, teria sido compreensível a barafunda que ele produziu com as várias versões de seu relatório para o projeto de lei contra as facções criminosas.

Infelizmente, Derrite é um veterano policial e secretário de Segurança do governador Tarcísio de Freitas, possível candidato a presidente da República. Mais: Derrite é um deputado federal e provável candidato ao Senado em nome do que seria um desejo do eleitorado por mais segurança. Foi laçado pelo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, para relatar o projeto de lei contra as facções criminosas.

Com quatro versões, Derrite produziu um monstrengo revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do país.

Tome-se como exemplo a limitação que Derrite quis impor à Polícia Federal (PF). Seu primeiro relatório estabelecia que a PF só poderia investigar depois de ter havido uma solicitação do governador do estado. Gracinha. Existem crimes federais, como o tráfico de armas e de drogas, mas a PF dependeria de uma licença dos governadores.

Se esse sistema existisse nos Estados Unidos do século passado, teriam continuado as execuções de ativistas que lutavam contra a bandidagem racista de estados do Sul. Quem viu o filme “Mississippi Burning” sabe do que se trata. A bandidagem racista operava com o apoio de governadores, juízes e policiais. Foi a Polícia Federal quem desarmou as tramas.

Lá, a Federal chama-se Federal Bureau of Investigation, o FBI. Foi dirigido de 1924 a 1972, quando morreu, por J. (de John) Edgar Hoover. Sujeito detestável, grampeava inimigos, chantageava políticos e presidentes. Solteirão misógino foi um mau exemplo, mas criou uma instituição, robusta e honesta (à sua maneira). Hoover foi um mau exemplo, mas criou e protegeu uma instituição exemplar.

Com esse nome, a Polícia Federal brasileira surgiu em 1967. Desde então, ela se tornou, de longe, a mais respeitada instituição policial do país. Derrite queria que ela pedisse licença aos governos estaduais para desempenhar suas funções. O deputado-secretário é capitão da reserva da PM paulista, onde fez fama na tropa de elite da Rota.

O Primeiro Comando da Capital (PCC) operava sua rede de postos de gasolina, empresas e fintechs de São Paulo há décadas. Graças à Operação Carbono Oculto, do Ministério Público e da Polícia Federal, parte dessa máquina foi desmontada, isso sem um só tiro. A Operação Escudo da polícia de Tarcísio e Derrite matou 28 pessoas num só mês de 2023. Quase todos pretos pobres e moradores da periferia.

Com sua proposta de emasculação da Polícia Federal, Derrite mostrou que, enquanto o crime está organizado, o governo de São Paulo tornou-se, na melhor das hipóteses, uma bagunça.

Bolsonaro, Lula e Pétain

Em 2018 discutia-se onde Lula deveria cumprir sua condenação. Deram-lhe uma solitária-light na Polícia Federal de Curitiba. Ficava sozinho numa sala com cama, mesinha e banheiro. Não podia deixá-la e para se comunicar com os carcereiros devia bater na porta.

Passaram-se sete anos, Lula foi exonerado pelo Supremo Tribunal, elegeu-se presidente da República e tem dois palácios em Brasília, e o assunto renasceu, com a prisão de Jair Bolsonaro. Ele está em prisão domiciliar, condenado a 27 anos de cárcere pelo STF.

O ministro Alexandre de Moraes parece disposto a testar o prisioneiro, um septuagenário de saúde e nervos abalados. Ele iria para uma ala-light da penitenciária da Papuda. Não se faz isso com um ex-presidente. Para quem detesta Bolsonaro, uma ala-light seria demais. Para quem gosta do ex-capitão, ele deveria cumprir a pena em casa como faz o ex-presidente Fernando Collor.

Em qualquer caso, como o de Lula, o Brasil deveria olhar para o exemplo que a França deu ao mundo ao encarcerar o ex-presidente Phillipe Pétain. Ele era um marechal octogenário que em 1940 assumira poderes ditatoriais depois da invasão alemã, em 1940. Caso clássico de traição nacional, estava condenado à morte. Foi colocado numa fortaleza, onde recebeu um quarto, com uma pequena sala anexa. Lá, Pétain morreu de causas naturais, em 1951.

Bolsonaro é um ex-presidente da República, levado ao poder pelo voto popular. Quando ele arrisca ser mandado para uma rotina semelhante à de um marechal usurpador e colaboracionista, alguma coisa está errada.

Flávio candidato

Flávio Bolsonaro é candidato a presidente da República. Como sucede a todos os candidatos da bancada oposicionista, seu principal adversário é o governador paulista Tarcísio de Freitas, que diz preferir a reeleição.

... se Stefanutto falar

Com a prisão do ex-presidente do INSS Alessandro Stefanutto, alguns hierarcas de Brasília perderam horas de sono.

A PF diz que o doutor recebia uma mesada de R$ 250 mil da quadrilha que roubava aposentados. Ele não seria o único felizardo a receber mimos. Nenhuma quadrilha paga R$ 250 mil mensais a uma só pessoa.

Ken Burns fez mais uma

O documentarista americano Ken Burns, mago que recontou a história da Guerra Civil e da Guerra do Vietnã, pôs no ar sua história da Revolução Americana, que terminou com a criação dos Estados Unidos.

São seis episódios filmados em 169 lugares. Com 26 entrevistas, Burns recolheu 18 mil imagens e 1.900 mapas.

Ele começa colocando George Washington num pedestal mais modesto.

A 4 de julho de 2026 a Declaração da Independência dos EUA completará 250 anos numa festa de grandiloquência trumpista. Dando voz a negros, índios e mulheres, Burns chegou antes, com mais equilíbrio.

Vitória dos democratas

Depois de Nova York, Seattle elegeu a ativista Katie Wilson, de 43 anos, prefeita da cidade.

Ela nunca havia disputado uma eleição.

Milei prometeu e cumpriu

O presidente argentino Javier Milei prometeu se afastar do Mercosul e cumpriu. Está detonando a instituição e aproximando-se dos Estados Unidos.

Nos anos 1990, durante o governo de Carlos Menem, a chancelaria argentina anunciou sua disposição de manter uma “relação carnal” com Washington.

Deu na ruína da dolarização.

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