sexta-feira, 14 de novembro de 2025

‘O agente secreto’ é equívoco político, por Pablo Ortellado

O Globo

Filme aponta para questões relevantes, mas as trata de modo esquemático

Estreou nos cinemas “O agente secreto”, novo filme de Kleber Mendonça Filho. Vencedor de duas premiações importantes em Cannes, ele tem recebido reconhecimento quase unânime da crítica. O filme, porém, está atravessado por equívocos políticos.

Conta a história de Marcelo Alves (Wagner Moura), um professor de engenharia da Universidade Federal de Pernambuco perseguido por Ghirotti, funcionário graduado do governo, durante o período da ditadura militar. Ghirotti, convencido de que o desenvolvimento tecnológico brasileiro deve se concentrar no Sudeste e de que o departamento de Marcelo precisa de um “banho de imersão” no setor privado, ameaça fechá-lo.

Durante um jantar, o desentendimento entre os dois esquenta, e a mulher de Marcelo termina agredindo o filho de Ghirotti. Ela morre em seguida, em circunstâncias não explicadas (talvez assassinada?), e Marcelo se lança numa longa fuga que o leva a São Paulo, depois de volta ao Recife, onde se refugia num predinho com outros perseguidos. Tenta se reunir com o filho, que vive com os avós, para se exilar no exterior, quando descobre que é procurado por pistoleiros.

O filme se organiza por meio de duas oposições que deveriam dar a ele um sentido político. A primeira é entre o impulso e a lei. O Recife dos anos 1970 é retratado como lugar sem lei, onde toda regra é burlada, e uma exceção sempre pode ser comprada. Logo na primeira cena, vemos Marcelo abastecendo o carro num posto no sertão, diante de um corpo abandonado há dias. A polícia se aproxima, e ficamos com a expectativa de que recolherá o cadáver, mas a intenção dos policiais é apenas achacar Marcelo para obter propina. A lei não parece ser capaz de impor limite ao poder.

Mas a lei fraca também é celebrada como catarse popular. A maior parte da trama se passa no carnaval, e vemos o enredo de perseguições e ameaças se desenvolver em meio a blocos e festas populares. O sexo não parece ser contido pela lei e a todo momento extravasa no espaço público — no meio de uma sessão de cinema, no meio do expediente de trabalho e também numa praça à noite, numa cena-devaneio divertida. As camisas quase sempre desabotoadas também representam a natureza mal contida pela norma.

Às vezes essa carnavalização parece aludir, esteticamente, ao Gláuber Rocha de “Terra em transe” e “Deus e o diabo na terra do sol”. Mas, enquanto a carnavalização em Gláuber — a gestualidade exagerada, as multidões descontroladas, os corpos suados — busca transformar a solenidade política, da esquerda e da direita, em delírio, histeria e excesso, no filme de Mendonça Filho ela tem função completamente contraproducente.

O filme é marcado por uma perspectiva libertária setentista que exalta a libido como subversão da norma opressiva. Só que a afirmação da sexualidade incontida termina celebrando a fraqueza da norma que, noutra chave, busca condenar. Quando o filme denuncia diretamente a lei que não consegue conter os abusos dos poderosos, essa deficiência não parece recair apenas sobre a ditadura, mas também sobre o Recife “atrasado”. Nesses momentos, involuntariamente, retoma o velho tópos das “ideias fora do lugar”, da vida social na periferia do capitalismo que não consegue estar à altura da norma europeia civilizada.

A segunda oposição com que o filme trabalha é mais juvenil. Aqui, “O agente secreto” retoma a visão política simplória de “Bacurau”. Mendonça Filho reedita o antagonismo esquemático entre um Nordeste popular, tolerante e resistente e um Sudeste capitalista, arrogante, racista e colonizador.

Se isso o havia levado, em “Bacurau”, ao delírio de imaginar uma comunidade popular sertaneja que celebrava o cangaço, aqui ele delira com uma ditadura privatista. Estamos nos anos 1970, no auge do desenvolvimentismo militar, com acelerada expansão das estatais e dos projetos de desenvolvimento regional — a época de ouro da Sudene e do Banco Nacional do Nordeste.

Mas não se trata apenas de erro em relação ao contexto histórico da política econômica da ditadura. Ghirotti é um vilão esquemático, sem qualquer densidade psicológica. Não é um apoiador do regime com medo da tirania comunista ou um empreendedor orgulhoso daquilo que construiu. É apenas um cafajeste que defende, sem qualquer elaboração, injustiças flagrantes e privilégios. Esse empobrecimento do personagem não compromete apenas a inteligência política do filme, mas também sua capacidade de construir conflito dramático.

Apesar das qualidades formais, “O agente secreto” fracassa justamente nas duas oposições que deveriam sustentar seu projeto político: a tensão entre impulso e lei se dissolve numa celebração acrítica da desordem, e o contraste entre Nordeste e Sudeste é reduzido a uma caricatura, sem densidade dramática nem rigor político. O filme aponta para questões relevantes, mas as trata de modo esquemático, ora celebrando o que critica, ora simplificando o que deveria tornar complexo.

 

Nenhum comentário: