sábado, 15 de novembro de 2025

Lula perdeu a conexão com o povo? Por Thaís Oyama

O Globo

Quando o PT ancorava sua agenda na defesa dos direitos humanos em 1980, o cenário da criminalidade no país era outro

‘Reage, D’Alema, responde! Diz qualquer coisa de esquerda!’ A frase é de Nanni Moretti no filme “Abril”. Na cena, o italiano grita para a TV ao ver seu candidato, Massimo D’Alema, tomar um baile do populista de direita Silvio Berlusconi num debate eleitoral. No longa de 1998, Moretti faz uma versão ficcional dele mesmo — um cineasta de esquerda frustrado com a tibieza de seu campo político.

Lula, para alívio de seus Morettis, disse uma “coisa de esquerda” — aliás, duas — sobre a Operação Contenção, no Rio, e a consequência, como mostrou a pesquisa Quaest desta semana, foi a queda na sua popularidade. As frases do presidente — a operação “foi desastrosa do ponto de vista da ação do Estado” e traficantes são “vítimas dos usuários”, esta última dita e depois desdita — mereceram franca rejeição da maior parte dos brasileiros. Estaria Lula em Marte e os eleitores em Vênus?

O alinhamento entre as partes já foi melhor. Quando, na alvorada da abertura política, o PT ancorava sua agenda na defesa dos direitos humanos, o cenário da criminalidade no país era outro. A taxa nacional de homicídios no ano de fundação da sigla, 1980, era 11,7 por 100 mil habitantes. Na década seguinte, ocupavam as manchetes dos jornais as chacinas cometidas por grupos paramilitares que tinham por alvo bandidos, pobres e moradores de rua. Entraram para a história os massacres do Vigário Geral, em que 23 moradores foram assassinados para “vingar” a morte de policiais, e da Candelária, em que oito meninos e adolescentes foram executados, também por grupos ligados à PM. O PT era então a voz mais alta entre as que se levantavam contra a violência policial herdada do regime militar.

Quarenta e cinco anos depois, a taxa de homicídios praticamente dobrou, e o crime organizado tomou o país de norte a sul. No Rio, há hoje em torno de 5 mil barricadas instaladas por traficantes que impedem a entrada em bairros de caminhões de lixo, carros de aplicativo e até ambulâncias do SUS, expondo moradores à humilhação e ao risco. Em cidades da Bahia e do Ceará, incluindo Fortaleza, mais de 200 pessoas tiveram de abandonar suas casas — muitas levando só a roupa do corpo — para escapar de invasões de facções, de suas ameaças de extorsão ou da morte certa, no caso das que têm ligações familiares com rivais do grupo invasor. Segundo levantamento do GLOBO, 64 facções atuam hoje nas 27 unidades da Federação. São os moradores das periferias as principais vítimas dessa violência.

Mas, se o Brasil mudou e o crime também, Lula continua na mesma toada de 45 anos atrás, num comportamento indicativo de que o três vezes eleito presidente enfrenta dificuldades para sentir o pulso do eleitorado. Levantamento da Quaest de junho mostrou que seis em cada dez brasileiros concordam que Lula “perdeu a conexão com o povo”. Entre os beneficiários do Bolsa Família, o índice de concordância com a afirmação foi de 59%. No Nordeste, reduto do PT, 54%. Da mesma forma, entre os que rejeitam a ideia de que traficantes são vítimas de usuários, estão 66% de eleitores que se identificam como lulistas. Para estes, também, quando o assunto é crime, ouvir “qualquer coisa de esquerda” já não é suficiente.

A favor do presidente, pesquisadores experientes têm dúvidas se a segurança será mesmo o principal tema da campanha de 2026. Lembram que o assunto nunca foi determinante num pleito presidencial e que uma mudança na economia ou um escândalo de corrupção podem facilmente afetar os ventos eleitorais. Em qualquer dos casos, recomenda-se que o marketing presidencial resista à ideia de trocar outra vez o slogan da gestão, já que o novo mote — “Governo do Brasil, do lado do povo brasileiro”— agora resta sem sentido, gravado em vão em toneladas de impressos do governo destinados a propagandear uma soberania que já não é mais assunto.


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