O Globo
O identitarismo inventou o pecado, mas, como
na canção de Chico Buarque, se esqueceu de inventar o perdão
Pelos critérios da 36ª Bienal de arte de São
Paulo, você não leria esta coluna. Haveria um conflito entre os temas abordados
(quaisquer que fossem) e o trágico passado colonial mineiro.
É que um dos meus tetravôs foi o major José
Luís da Silva Vianna. Pelos serviços prestados na Guerra do Paraguai, ele
ganhou de D. Pedro II a patente militar e as terras onde mais tarde mandou
erguer uma capela. No entorno, formou-se uma aldeia de indígenas catequizados,
que deu origem à Vila de São Sebastião de Pedra do Anta, hoje um pacato
município da Zona da Mata mineira.
O major não só participou do etnocídio no Paraguai e em Minas, como se valia de trabalho escravo em suas lavouras de café. Cinco gerações depois, ainda deve respingar sangue no teclado em que digito — motivo suficiente para que este texto não deva ser lido.
Meu avô paterno, Custódio Alves Affonso, era
pardo. A classificação étnico-cromática constava de seus documentos: nascido em
1902, pegou uma época em que “raça” ainda era um conceito cientificamente
aceito. Segundo o critério de “uma gota de sangue”, posso, portanto, me
declarar pardo (quiçá preto) e pleitear pelo menos uma amortização da dívida
histórica. Ponderando a provável ascendência africana do avô e a comprovada
condição escravagista do tetravô, estou no débito ou no crédito?
Outro bisavô, António Raposo de Medeiros, era
produtor cafeeiro no Norte do Estado do Rio. Em suas terras foram descobertas
fontes de água mineral, e a plantação virou a estância Águas do Raposo — hoje
uma sossegada cidade que leva seu sobrenome. Não sei se há registros de fazenda
de café no final do século XIX sem mão de obra escravizada — logo, minha culpa
pela diáspora africana ganha mais um agravante.
Vovô Raposo e vovô Vianna — de quem não
herdei fortuna ou sobrenome — talvez sejam neutralizados por minha avó
Clotilde, de pele parda (e por nós chamada carinhosamente de Vó Preta). Ela se
casou com Zizico Jacó — oleiro, calceteiro, por fim oficial de Justiça –, cujo
sobrenome não deixa dúvidas quanto à origem étnica.
Sopesando os ancestrais senhores de terras e
gentes, imigrantes pobres e trabalhadores braçais, brancos e pardos, mouros e
semitas, as colunas que escrevo são opressoras ou oprimidas?
Em “Crônicas históricas do Rio colonial”,
Nireu Oliveira Cavalcanti conta, entre muitas outras, a história de Inácia de
Souza, escravizada que comprou a própria alforria, depois arrematou o filho,
Mateus Teixeira, por 40 mil-réis, e o manteve como escravo até a morte. E a do
preto Valentim Galvão, que, tendo juntado dinheiro suficiente para se libertar,
adquiriu no mercado do Valongo uma preta de Benguela, Francisca, e negociou,
anos depois (com lucro), a filha dela.
Já a princesa belga Marie-Esméralda, ativista
dos direitos humanos e causas socioambientais, foi impedida de participar de um
debate por ser sobrinha-bisneta de Leopoldo II — responsável por atrocidades no
Congo, mais de um século atrás. Vá convencer um justiceiro social, como o
diretor artístico da Bienal, de que o genocídio não vem nos genes e que um
afrodescendente pode descender tanto de um escravizado quanto de um
escravizador.
A Igreja Católica criou o pecado original e
uma forma igualmente original de nos livrarmos dele, o batismo. O identitarismo
também inventou o pecado, mas, como na canção de Chico Buarque, se esqueceu de
inventar o perdão.

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