- O Globo
Nem nas ruas de Manágua hoje conseguiremos escolher tranquilamente o nosso lado, o lado que deve ser o certo
Como é natural que aconteça, o demônio tem muitos inimigos. Mas nem sempre os inimigos do demônio são bons sujeitos, e muito menos santos. Ou anjos. Muitas vezes, os inimigos do demônio são piores que o próprio. Não temos, portanto, que escolher entre um e outros, não há como coloca-los numa tabela de valores. A não ser que estejamos fazendo política, e aí, como de hábito, entram em jogo interesses que não têm nada a ver com princípios.
Daniel Ortega foi um dos líderes da revolução socialista e democrática sandinista que, vitoriosa em 1979, libertou a Nicarágua de uma ditadura de quatro décadas. Depois de ocupar a Presidência do país por alguns períodos pós-revolucionários, Ortega voltou ao poder em 2007, impondo uma reforma previdenciária exigida pelo FMI e uma lei que eliminava o limite de mandatos. Os estudantes saíram às ruas se opondo ao autoritarismo do governo e foram seguidos pelo resto da população nicaraguense. Já foram contabilizados mais de 300 mortos, vítimas da polícia e dos paramilitares a serviço do governo, além de prisões e torturas como nas piores ditaduras latino-americanas.
A esquerda do continente se dividiu diante do que acontece na Nicarágua. Tabaré Vázquez e Pepe Mujica, heróis da esquerda uruguaia, denunciam a traição de Ortega à Revolução Sandinista. Evo Morales, presidente boliviano de origem popular, acusa os rebeldes de estarem sob o comando do imperialismo americano. Assim como os líderes cubanos e venezuelanos tratam o movimento espontâneo como um golpe articulado pela “ultradireita local”, o contrário do que afirmam os membros do Partido Socialista do Chile e a Frente Ampla da Costa Rica.
No Brasil, PT e PSOL, dois partidos que se desejam representantes das esquerdas brasileiras, divergem. O primeiro é a favor e o segundo contra o que faz atualmente Daniel Ortega na condução da Nicarágua. E se intelectuais comunistas comparam a luta contra o presidente eleito com o “golpe do impeachment contra Dilma Rousseff”, o teólogo progressista Leonardo Boff pede enfaticamente que “as forças repressivas parem de matar os jovens nicaraguenses”.
Há quem pense que, nem estando hoje nas ruas de Manágua, conseguiremos escolher tranquilamente o nosso lado, o lado que deve ser o certo. E essa tragédia moral volta a nos suceder no momento em que a humanidade está sendo fartamente alimentada por novas e múltiplas formas de comunicação e conhecimento, que não deveriam nos deixar em dúvida nenhuma opção, por mais delicada que fosse.
Um dos mais lembrados “Provérbios do inferno”, de William Blake, diz que “a estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”. Esse texto, escrito em algum momento da segunda metade do século XVIII, tem tudo a ver com a euforia da Revolução Industrial, a capacidade que o homem julgava passar a ter de se projetar no futuro como parte incontestável dele. O pensamento seria uma forma concreta de gerir o mundo, distante da contemplação impotente do período pré-industrial. Agora, como já não temos a ilusão de que podemos saber tudo e com esse saber mudar o mundo, nossa escolha deve se basear naquilo que julgamos fundamental à sobrevivência dos homens no planeta.
A liberdade e o efeito que ela tem em nosso conhecimento e ação. Não pode nos interessar apenas saber da luta entre partidos e ideias; basta que os acontecimentos do mundo se deem em benefício da vida. Como no caso da crise na Nicarágua, por exemplo, onde a luz está em deixar a liberdade fluir segundo o que ficou combinado — segundo as leis. A liberdade e o respeito à opinião do outro são os óbvios segredos da história que ainda não conseguimos dominar. Se um dia chegarmos lá, não haverá mais anjos e demônios com que nos alinharmos, para que possamos escolher por onde ir. Mas simplesmente a força indiscutível do que a humanidade precisa para ir em frente e sobreviver, como fazem os jovens rebeldes nas ruas da Nicarágua, em defesa da liberdade e do futuro deles mesmos.
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Cacá Diegues é cineasta
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