O Globo
Os grupos se fecharam no entorno da
identidade comum e passaram a ver o resto da sociedade como rival
O período que se seguiu à morte do ativista
de direita americano Charlie Kirk foi intenso. Muita gente foi demitida, muita
gente foi cancelada, muita gente foi calada — e não só nos Estados Unidos,
também aqui no Brasil. A maioria era, essencialmente, responsável pelo terrível
crime de mau gosto. Dizer coisas fora do tom, desagradáveis, porque não
gostavam de Kirk. Não faltou quem comparasse o comportamento das massas
canceladoras da direita aos muitos canceladores de esquerda. Porque, afinal, o
comportamento foi rigorosamente o mesmo.
Pois é, nos tempos da internet, uma das coisas que viraram tabu é comparar esquerda com direita. Afinal, a extrema direita no Brasil tentou um golpe de Estado, nos Estados Unidos promove o descrédito do sistema eleitoral, na Europa o partido alemão AfD quer vestir roupa nova no velho nazismo, e a xenofobia corre solta. Assim, para qualquer tentativa de fazer comparação, alguém tira da manga a carta da falsa equivalência. Isso não muda o fato à nossa frente. A direita trumpista se comportou igualzinho à esquerda woke. Tem explicação. Uma explicação que envolve redes sociais e ajuda a compreender a crise democrática.
Precisamos voltar a ler Francis Fukuyama.
Frank, como o chamam seus amigos, está com 72 anos e segue produzindo
loucamente, como já fazia há mais de 30 anos, quando propôs a ideia do fim da
História. Porque a explicação da semelhança já estava lá no livro, em 1990, e
ele a vem desenvolvendo muito nos últimos anos. Ele mostra como política
identitária não é exclusividade da esquerda, é turbinada pelas redes e é nosso
maior problema.
A tese de Fukuyama começa por thymos. Platão dividia a alma
humana em três partes. Logos,
a razão; epithymia, o
apetite, desejo; e thymos,
o anseio por reconhecimento e dignidade. Quando alguém se sente desrespeitado,
busca reconhecimento, luta às vezes com raiva pelo olhar do outro, é de thymos que falamos. O
impulso político na sociedade, hoje, está ancorado nesse nosso aspecto de todo
humano.
Há um desejo, da parte de grupos há muito
jogados para as franjas da sociedade, de ser reconhecidos. Negros, mulheres, a
comunidade LGBTQIA+. Dos anos 1990 para cá, porém, a percepção dessa luta
mudou. Ela deixou de ser uma briga por direitos universais. Uma luta para todos
serem tratados igualmente perante a lei. Os grupos se fecharam no entorno da
identidade comum e passaram a ver o resto da sociedade como rival. Como algo à
parte. Só meu grupo importa.
A identidade à direita, o nacionalismo
cristão, o nacionalismo branco, os movimentos anti-imigrantes aparecem em
resposta. Os instintos talvez já estivessem lá, mas há claramente a formação a
partir do espelho. A direita aprende a promover sua militância daquele jeito
com a esquerda. Aí, se apresenta como vítima. O Estado comunista tenta tirar
meus direitos, de cidadão de bem. Mas, ponha o olho lá, e é a mesma estrutura.
O mesmo comportamento. A mesma rejeição à ideia de universalidade dos direitos.
O mesmo desejo de tratamento especial em detrimento do outro grupo. Tanto na
esquerda quanto na direita, os grupos fazem a mesma demanda: olhem para mim.
Reconheçam-me em detrimento do outro. A minoria se põe como vítima, a maioria
reage também se percebendo como vítima, apesar de predominante. Todos ignorados
porque o outro foi visto.
Fukuyama vem mostrando, especialmente de 2020
para cá, como as redes sociais turbinam esse mecanismo. Claro. Elas são
construídas para que pessoas se exibam, se mostrem, se apresentem. O desafio
que as redes trazem a cada um que se junta a elas é um só: descubra como
aparecer mais que os outros. A rede quer que todo mundo busque reconhecimento.
Não é à toa que as emoções presentes são raiva, orgulho, revolta —
ressentimento. O outro tem, por que não tenho?
O problema do direito ao reconhecimento, a
ser visto como parte da sociedade, é de todos nós. É da natureza humana. Mas,
quando a busca por reconhecimento de identidades do grupo assume as rédeas da
política, a democracia quebra. Porque o tribalismo não é novo. Já tivemos, no
passado, sociedades divididas em tribos, em clãs, por religiões. Nada disso é
desconhecido. A democracia nasceu com a ideia sofisticada de que todos somos
iguais perante a lei, porque é uma solução melhor para todo mundo. Não é “seu
grupo precisa ser pior que o meu”. É “temos os mesmos direitos por sermos
brasileiros”. Ou americanos. Ou seja lá o que for.
Quando a política pré-moderna toma as rédeas,
o jogo será assim: quem consegue ferrar mais com o outro grupo, quem derruba
mais gente, quem prende, quem cala. Não pode ser isso que queremos.
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