O Globo
Descobri recentemente Hakim. E fiquei
contente por os três volumes já estarem publicados; teria sido aflitivo esperar
o desenrolar da história
Não gosto do termo graphic novel. Ele
define, em tese, histórias em quadrinhos com pretensões literárias, mas essa
definição não funciona, a começar pela expressão “pretensões literárias”.
Graphic novels não têm “pretensões literárias”. Elas são uma outra forma de
arte, em que o desenho tem peso tão ou mais importante do que as palavras. Elas
não precisam ser o que não são para brilhar no mundo.
Infelizmente não posso jogar fora o termo
porque ainda não existe outro para definir graphic novels, que são histórias em
quadrinhos que vão além das HQs clássicas como as conhecemos das bancas e dos
jornais — seja em tamanho, seja em profundidade filosófica; histórias em
quadrinhos com um ou dois pés no romance, na História, na ficção científica ou
na autobiografia; histórias em quadrinhos, pois, com... pretensões literárias?
(Entra aqui aquele emoji de olhinhos virados para cima, que desistiu de buscar lógica no mundo. Estão vendo como a arte visual é importante para a comunicação?)
Graphic novels vivem no seu cantinho
particular no fundo das livrarias, para onde convergem as crianças e os
aficionados. O resto dos leitores passa batido, “ah, são só quadrinhos”. Ainda
não foram fisgados.
É compreensível. Enquanto outras formas de
contar histórias existem há séculos, as graphic novels são relativamente
recentes, e ainda precisam de apresentação. Não parecem coisa para adultos.
(Toda vez que indico uma, aliás, acabo
escrevendo um texto como esse, para desarmar o espírito de leitores que ficam
desapontados com a recomendação. Não fiquem: deem uma chance ao gênero.)
O Oriente Médio e seus personagens são
quase um subgênero no mundo das graphic novels: “Persépolis”, de Marjane
Satrapi, “O árabe do futuro”, de Riad Sattouf, “Crônicas de Jerusalém”, de Guy
Delisle, “Habibi“, de Craig Thompson... A lista é enorme.
Descobri recentemente “A odisseia de
Hakim”, de Fabien Toulmé, cujo terceiro (e último) volume chegou às livrarias
brasileiras em março deste ano, com tradução de Fernando Scheibe para a editora
Nemo. Fiquei contente em ter feito essa descoberta quando os três volumes já
estavam publicados; teria sido muito aflitivo aguardar o desenrolar da
história.
No começo do primeiro volume, Hakim
trabalha com o pai no negócio da família, um viveiro de plantas em Damasco. Aos
25 anos já conseguiu comprar carro e dar entrada num belo apartamento. Apesar
dos incontáveis problemas que enfrenta no cotidiano de um regime repressivo e
corrupto, adora sua terra e não imagina outra vida — até que é envolvido pela
violência e pela guerra.
De um dia para o outro tudo desmorona à sua
volta e ele se vê obrigado a fugir. Pula de cidade em cidade e de país em país,
mas ninguém quer saber de imigrantes sírios. Não há emprego em lugar nenhum.
Anos se passam até que consiga chegar à
França, onde Fabien Toulmé o conhece. Os três livros da odisseia são o
resultado de um conjunto de longas entrevistas.
Hakim não é apenas Hakim; Hakim é o homem
comum vítima do caos, o jardineiro que perde as suas raízes. Hakim é sírio mas
poderia ser haitiano, rohingya, líbio, etíope, afegão, venezuelano.
Hakim é qualquer um de nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário