Em 1888, a abolição da escravidão fez os ex-proprietários perderem patrimônio equivalente a duas vezes o PIB da época. Essa elite não "aceitou" a mudança, se reorganizou. A Lei de Terras de 1850 garantira que só quem tinha dinheiro comprasse terras. Imigrantes europeus vieram com subsídios estatais. Aos ex-escravizados sobrou a "liberdade" de morrer de fome ou aceitar trabalhos insalubres e com remuneração degradante. Não foi acaso. Foi projeto.
Mas nossa história tem outro lado: a
resistência. Palmares durou quase um século como território livre do tamanho da
França medieval, com agricultura diversificada e democracia participativa. O
Brasil colonial precisou de 18 expedições militares para destruir uma sociedade
que provava ser possível viver diferente.
A Revolta dos Malês (1835) não foi um motim
desesperado, mas uma insurreição organizada por décadas, com líderes letrados
que tinham um projeto político claro: abolir a escravidão e criar uma sociedade
multirracial. Canudos, com 35 mil habitantes, organizou produção coletiva,
distribuição de alimentos e acolhimento de ex-escravizados. Foi destruída numa
guerra que matou mais gente que a Guerra do Paraguai.
As elites brasileiras desenvolveram técnica
refinada: promover mudanças institucionais que neutralizam pressões populares
sem alterar estruturas de poder. A Independência de 1822 manteve o imperador português,
a escravidão, o latifúndio e a economia colonial intactos. Mas a Confederação
do Equador (1824) propunha república democrática, abolição e reforma agrária,
foi esmagada porque representava independência real.
A Proclamação da República seguiu o padrão:
golpe militar impediu república democrática popular e instalou ditadura
oligárquica que excluiu 95% da população do voto.
Getúlio Vargas personifica a genialidade
perversa desse modelo: industrializou, criou legislação trabalhista, fundou
universidades. Simultaneamente, reprimiu movimentos operários autônomos e
manteve a estrutura agrária intocada.
Entre 1945-1964, movimentos populares
ameaçaram pela primeira vez alterar correlações fundamentais de poder. João
Goulart propôs reformas moderadas: agrária, urbana, universitária. O golpe
civil-militar de 1964, apoiado pelos EUA, interrompeu violentamente a única
experiência brasileira de democracia com participação popular efetiva.
A redemocratização pós-1985 seguiu o padrão:
a Constituição de 1988, apesar de conquistas sociais, manteve concentração
fundiária, sistema financeiro oligopolizado e inserção subordinada na economia
mundial. Anistia recíproca garantiu que torturadores nunca fossem julgados.
Entre 2003 e 2016, políticas sociais
alteraram significativamente as condições de vida das classes populares: 36
milhões saíram da pobreza, o salário mínimo teve aumento real de 70%, foram
criadas 18 universidades federais, e as cotas alteraram o perfil das
universidades públicas.
Mas estruturas fundamentais não mudaram:
reforma agrária foi irrisória, sistema tributário continuou regressivo,
democratização da mídia não foi enfrentada e a reforma política beneficiou
apenas as elites.
Os governos petistas enfrentaram dilema
estrutural: avançar significaria confrontar classes dominantes. A opção foi
aliança com frações do capital nacional em troca de concessões sociais.
Funcionou durante o crescimento econômico. Na crise, a conciliação se tornou
insustentável. Daí veio o impeachment da presidenta Dilma em 2016, resolvendo o
impasse em favor do capital.
O Brasil é simultaneamente a 9ª economia
mundial e um dos países mais desiguais. Essa contradição não é paradoxo, é
funcionamento normal de sistema que produz riqueza concentrando-a brutalmente.
O sistema tributário transfere renda dos
pobres para ricos: 50% da arrecadação vem de impostos sobre consumo que incidem
igualmente sobre todos. Não existe imposto sobre grandes fortunas. Lucros e
dividendos não são tributados. O Estado arrecada dos pobres para financiar
serviços que atendem principalmente os ricos.
Milhões de brasileiros organizam experiências
concretas de solidariedade e economia alternativa. O MST não apenas luta por
reforma agrária, é laboratório de inovações que abrange educação popular,
agricultura agroecológica, comunicação alternativa. Nos assentamentos vivem 1
milhão de famílias que provam ser possível produzir alimentos saudáveis
preservando o meio ambiente.
Nas periferias urbanas fervilha revolução
cultural, o hip hop combina expressão artística com consciência política.
Saraus transformam botecos em espaços de literatura e organização comunitária.
Mães de vítimas da violência policial denunciam genocídio da juventude negra e
propõem segurança baseada em direitos humanos.
A economia solidária envolve 1,4 milhão de
trabalhadores experimentando autogestão e solidariedade, empresas recuperadas
provam que é possível produzir sem patrões. Bancos comunitários levam crédito
onde o sistema bancário não chega. Cooperativas de agricultura familiar
abastecem 30% da merenda escolar com alimentos frescos e sem agrotóxicos.
O Brasil tem condições para uma sociedade
justa e soberana. Faltam decisões políticas que priorizem necessidades
populares sobre lucros do capital financeiro. Reformas estruturais necessárias:
redistribuir terras improdutivas, criar impostos sobre grandes fortunas,
democratizar comunicação, estabelecer financiamento público exclusivo de
campanhas eleitorais.
As contradições brasileiras não são eternas,
o país que concentra renda como poucos tem constituição avançada em direitos
sociais. A nação que elegeu ex-operário presidente mantém oligarquias
seculares. A sociedade que criou o SUS universal mantém diferenças educacionais
abissais.
O Brasil do futuro existe em germe nas
comunidades organizadas, assentamentos agroecológicos, cooperativas
democráticas, coletivos culturais engajados. Não precisamos mais de uma
revolução armada. Precisamos de uma revolução democrática que combine reformas
estruturais, participação social massiva, organização de base, educação
política, comunicação popular e economia solidária. Cada voto, cada ação decide
qual futuro construímos, a história não acabou. Apenas esperou que a base da
sociedade se empoderasse para poder escrever o próximo capítulo. Dessa vez,
serão os degredados, os da periferia, os excluídos que segurarão a caneta da
história, e dela surgirá um país mais justo, fraterno e solidário.
*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
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